Capítulo 03
Eu recentemente havia aprendido sobre
um fenômeno chamado poltergeist que era escrito em literatura anciã.
Em minhas mãos, estava segurando alguns
livros resgatados pela biblioteca em que minha mãe trabalhava. Estampado em uma
das capas havia o caractere 訞 (encantador). Os de nós na Escola da
Harmonia e da Academia do Sábio tem permissão de ler livros de classe um
estampados com “recomendado”, “excelente” e “bom”. Mas livros de classe quatro
como esse são indisponíveis para a maioria dos cidadãos. Por um desvio do
destino, ele escapou da biblioteca por estar enterrado no fundo de um armazém
subterrâneo.
De acordo com o livro, durante um
período no passado onde nem todo mundo possuía cantus, frequentemente havia
relatos de fantasmas batendo nas paredes, talheres dançando no ar, móveis se
movendo sozinhos, ruídos em casas vazias, e outros fenômenos esquisitos.
Mas na maioria dos relatos, sempre
havia alguma criança na casa. Uma análise disso é que a maioria das crianças
estavam passando por muitas batalhas emocionais na época, e a energia sexual
delas é inconscientemente manifestada como cantus.
Em outras palavras, poltergeists são na
verdade eventos de telecinese espontânea recorrente (TCER), e é obvio que o
Espírito da Bênção que me visitou não era um espírito, mas um caso de TCER.
Muitas coisas aconteceram nos três dias
que seguiram os eventos daquela noite. Representantes do Conselho de Educação
vieram para nossa casa logo após meus pais notificarem que eu havia adquirido meu
cantus. Havia uma mulher velha em roupões brancos, uma jovem que parecia uma
professora, e um homem de idade no que parecia um manto de monge. A velha no
meio não perdeu tempo em me questionar sobre minha saúde e condição emocional
em detalhes. Eu pensei que eu seria admitida na Academia do Sábio depois disso,
mas foi apenas o começo.
Eu fui levada de casa por algum tempo.
A velha disse que era parte do procedimento para entrar na Academia do Sábio e
que não devia me preocupar. Meus pais se despediram com um abraço e um sorriso,
e não mostraram nenhuma apreensão que podiam ter.
Eu embarquei em uma casa flutuante sem
janelas e me foi dado uma tigela de algo que disseram ser medicamentos contra
enjoo. Era doce, como açúcar mascavo, mas o gosto no fim era incrivelmente
amargo. Minha mente ficou branca logo após beber.
Eu pude sentir o barco navegando em uma
boa velocidade, mas não tinha ideia da direção que ele ia. Pela forma que as
ondas batiam e pelo som do vente, eu imaginei que o caminho em que viajávamos
não era muito largo. Talvez estivéssemos na corrente principal do rio Tone. Eu
queria perguntar, mas pensei que provavelmente era melhor não falar nada mais
do que o necessário. A jovem que me acompanhava me questionava incessantemente
o tempo inteiro. Não havia um tema para o que ela estava perguntando, e não
pareceu que ela estava escrevendo minhas respostas.
Três horas depois, depois de várias
curvas e voltas, o barco parou. O porto e a área ao redor estavam bem cobertos,
não dando nenhuma visão do lado de fora.
E assim como eu esperava, enquanto
subíamos as escadas para um prédio que parecia um templo, nenhuma parte do
mundo de fora era visível.
Um jovem monge de manto preto e uma
cabeça recentemente raspada foi nos cumprimentar. O trio do comitê apareceu
também. Eu fui levada para um quarto vazio com um estilo tradicional. Nas
paredes havia um pergaminho com caligrafia fresca. Eu não consegui ler o que
estava escrito, mas parecia similar ao que estava pendurado na escola da
Harmonia.
Eu me ajoelhei no tatame, mas pelas
instruções do monge, mudei para me sentar na posição de lotus, com a ponta dos
meus pés em minhas coxas. Ele parecia querer que eu meditasse e me
reorganizasse. Já que tínhamos que meditar todos os dias na escola da Harmonia,
eu estava acostumada, mas secretamente desejava que estivesse usando calças
mais confortáveis.
Eu respirei fundo pelo meu estômago e
tentei acalmar minha mente o mais rápido possível. Mas eu não precisava me
apressar, porque acabei esperando por duas ou três horas. Durante esse tempo,
eu percebi que o sol havia se posto. O Tempo pareceu passar em uma velocidade
diferente do que o normal. Apenas metade de mim estava tentando me acalmar. Por
algum motivo, não conseguia focar em apenas uma coisa.
Enquanto o quarto escurecia, eu comecei
a me sentir um pouco inquieta. No início não conseguia descobrir por que, então
percebi que mesmo que fosse perto do pôr do sol, eu não podia ouvir “Going
Home”. Não importava onde estivesse em Kamisu 66, você sempre ouviria a
melodia. Se eu estava longe o suficiente a ponto de não a ouvir, então
significava que eu estava fora da Barreira Sagrada.
Isso era mesmo possível?
A Natureza chamou. Eu perguntei em voz
alta se alguém estava por perto, mas não houve resposta. Eu não tinha opção a
não ser ir para o lado de fora. O corredor tinha pisos de rouxinol que piava
com cada passo. Felizmente, o banheiro estava logo no fim dele.
Quando voltei, uma lâmpada estava acesa
e um monge encurvado com um bigode branco estava sentado no quarto. Mesmo que
eu tivesse doze anos na época, eu era mais alta que ele. Ele parecia ancião.
Estava vestindo um manto muito remendado e mesmo sem dizer nada emitia um ar de
afabilidade. Eu me ajoelhei para ele.
— Como você está? Está com fome? — Ele
perguntou, sorrindo.
— Sim, um pouco.
— Já que veio até aqui, eu gostaria de
te indicar nossa cozinha vegetariana, mas infelizmente terá que ficar em jejum
até amanhã de manhã. Acha que consegue?
Eu estava desapontada, mas concordei
mesmo assim.
— Por sinal, eu sou o instrutor desse
templo destruído. Meu nome é Mushin.
Eu me endireitei em reflexo. Não havia
ninguém em Kamisu 66 que não conhecesse o nome do sagrado sacerdote. Assim como
Shisei Kaburagi que era reverenciado pelo poder de seu cantus, Mushin era amado
e respeitado por sua personalidade.
— Eu sou... Saki Watanabe.
— Eu conheço seus pais muito bem. — Ele
disse, concordando. — Eram crianças extraordinárias, e eu esperava que fossem
se tornar pessoas em que a cidade pudesse depender. E se tornaram, assim como
pensei.
Eu não sabia o que dizer, mas não era desagradável
ouvir meus pais sendo elogiados.
— Mas seu pai realmente gostava de
pregas peças. Ele costumava jogar ovos de Kayanosuzukuri na estátua de bronze
todos os dias. O cheiro era terrível e não sabíamos como nos livrar dele. Era
minha estátua, por sinal. Ah, naquela época, eu era o diretor da escola da
Harmonia.
— Ah, sério? — Era minha primeira vez
ouvindo que o sacerdote chefe Mushin tinha sido diretor. Eu também achava
difícil de imaginar que a personalidade do meu pai era a mesma de Satoru.
— Saki, você entrará na Academia do
Sábio logo e se tornará uma adulta. Mas antes disso, você deve se isolar neste
templo esta noite.
— Hm, onde fica esse templo? — Eu sabia
que era rude interrompê-lo, mas não pude segurar mais minha curiosidade.
— Esse é o Templo da Pureza.
Normalmente eu presido o Templo da Terra Pura em Kayawa, mas eu venho aqui para
queimar palitos de cedro para cerimônias de amadurecimento.
— Por acaso não estamos do lado de fora
da Barreira Sagrada?
O sacerdote chefe Mushin pareceu fracamente
surpreso. “Sim. É a primeira vez que você esteve fora da barreira desde que
nasceu. Mas não se preocupe, há uma barreira que é tão poderosa quando a
Barreira Sagrada ao redor de toda essa área.”
— Entendo.
A voz calma do sacerdote chefe Mushin
aliviou minha inquietude.
— Bem, é hora de se preparar. Acender
os palitos de cedro em si não é muito especial; é só uma cerimônia normal. Mas antes
disso teremos um pequeno sermão. Não é nada muito formal, então relaxe. E pode
deixá-la um pouco sonolenta, então tudo bem se acabar dormindo.
— Mas isso...
— Não, não, tudo bem, de verdade.
Insones vinham para meu templo para esse mesmo motivo, apesar de ser há um
longo tempo. De qualquer forma, passar uma noite inteira sem dormir, mas também
não fazer mais nada é uma perda de tempo, em minha opinião. Uma vez, precisei
dar um sermão, mas ninguém queria ouvir, então encontrei um monte de insones e
os juntei. Dentro dos primeiros dez minutos, todos estavam dormindo
profundamente.
O discurso do sacerdote chefe Mushin
não era devagar e estagnado como o da maior parte das pessoas de sua idade. Ele
tinha uma habilidade de encantar sua audiência. Eu ria e conversava com ele
facilmente.
Falando no sermão, não era tão chato a
ponto de me fazer cair no sono, mas não particularmente revigorante também. Era
sobre a Regra de Ouro. Faça aos outros o que gostaria que fizessem para você.
Basicamente, se colocar no lugar da outra pessoa e pensar em como se sentiria.
— ... Isso parece simples, mas é
difícil de realmente entender. Veja este exemplo. Você e uma amiga estão
escalando uma montanha e sentem fome pelo caminho. Seu amigo levou um bolinho
de arroz e começa a comê-lo, mas você não tem nada. Você pergunta se ela pode
dividi-lo e ela diz “não, não é necessário”.
— Por quê?
— Poque eu posso suportar a sua fome.
Eu estava chocada. Mesmo como uma
alegoria, era muito sem sentido.
— Não acho que exista alguém assim.
— Claro que não, mas e se existisse? O
que pensaria? Que parte do que disseram foi errado?
— Que parte... — Eu estava perdida. —
Eu acho que violaram o Código de Ética.
O sacerdote chefe Mushin balançou a
cabeça, sorrindo um pouco. “Algo tão óbvio provavelmente não está no Código de
Ética.”
É claro, se tivessem escrito regra por
regra assim, o Código de Ética teria tantos volumes que iria lotar a biblioteca
inteira indo até a Barreira Sagrada.
— A resposta para isso não é algo
racional; é emocional. — O sacerdote chefe Mushin bateu em seu peito.
— Meu coração?
— Exatamente. Você consegue sentir a
dor de sua amiga em seu próprio coração? Se pode, você iria querer ajudar de
alguma forma, certo? Essa é a coisa mais importante para os humanos.
Eu concordei.
— Você consegue sentir a dor do outro?
— Sim.
— Não hipoteticamente. Você realmente
consegue pegar a dor do outro e perceber como sua própria?
— Sim, eu posso. — Eu confirmei
confiantemente. Eu pensei que a entrevista oral tinha acabado, mas a reação do
sacerdote chefe Mushin foi diferente do que eu esperava.
— Então por que não tentamos?
Enquanto eu estava imaginando o que ele
queria dizer com “tentamos”, o sacerdote chefe Mushin tirou uma faca de seu
manto e desembainhou para revelar uma lâmina embotada. Eu estava chocada.
— O experimento é, você consegue sentir
minha dor quando é apresentada à você assim? — Sem aviso, ele se esfaqueou na
perna com a faca.
Eu encarei, estupefata.
— Com treinamento o suficiente, podemos
aguentar qualquer dor infringida em nossos corpos. Além disso, na minha idade,
eu não sangro tanto mais... — Ele murmurou desarticulado.
— Por favor, pare! — Eu gritei,
finalmente percebendo o que estava acontecendo. Minha voz falhou e meu coração
bateu loucamente em meu peito.
— Isso é para você. Consegue realmente,
de verdade, sentir a minha dor? Se pode, então irei parar.
— Eu consigo sentir, então pare!
— Não, você não consegue. Ainda está
apenas imaginando. A dor verdadeira vem do coração.
— Isso... — O que eu deveria fazer?
Minhas pernas não se mexiam.
— Tudo bem? Até que você sinta a dor,
eu preciso continuar fazendo isso. É o que devo fazer para guiá-la.
— M-Mas... Como eu posso...
— Não imagine. Assuma. Você. Fez. Isso.
Para. Mim. — A voz do sacerdote chefe Mushin estava cheia de dor. — Você
entende? Você. Está. Me. Fazendo. Sofrer.
Eu pensei que meu coração iria parar. O
que diabos eu deveria fazer para salvá-lo?
— Por favor, me ajude. — Ele disse em
uma voz baixa e rouca. — Pare com isso, me ajude.
Como eu deveria explicar a atmosfera
naquela hora? Era completamente irracional, mas eu gradualmente acreditei que
eu realmente estava torturando o sacerdote chefe. Lágrimas caíram
incessantemente de meus olhos.
O sacerdote chefe Mushin gemia de dor.
A mão segurando a faca em sua perna estava tendo espasmos rápidos.
Então algo inacreditável aconteceu. Meu
corpo congelou e eu fiquei impossibilitada de me mover, meu corpo de visão se
estreitou e havia um peso enorme em meu peito, me deixando sem ar.
— Por favor. Não. Me. Mate.
Aquelas palavras ativaram algo. Uma dor
aguda e afiada começou do lado esquerdo de meu peito e percorreu todo o caminho
para o topo de minha cabeça.
Eu perdi meu equilíbrio e caí de lado
no tatame.
Meu coração. Minha respiração, eu não
conseguia respirar. Minha boca abria e fechava como um peite fora d ‘água.
Eu vi o sacerdote chefe Mushin me
analisando como se estivesse observando um espécime em laboratório.
— Por favor se recomponha. — A voz
calma dele veio de longe. — Saki, está tudo bem. Nada aconteceu comigo.
Em meus olhos foscos, eu o vi se
levantar como se nada houvesse acontecido. Não parecia ter uma ferida em lugar
nenhum.
— Olhe com cuidado. Não possuo nenhum
machucado. A faca é falsa. Foi feita para não furar nada.
Quando ele empurrou a lâmina, ela se
retraiu na bainha.
Eu continuei deitada no chão por algum tempo,
extremamente confusa.
A dor foi embora e eu consegui me mover
novamente.
Eu levantei, secretamente irritada com
a pegadinha. Antes que eu pudesse abrir minha boca para reclamar, as mudanças
em meu corpo me pegaram de surpresa.
— Chocante, não é? Mas com isso, você
passou no teste final. — O rosto do sacerdote chefe Mushin retornou a sua
expressão benevolente de sempre. — Se consegue sentir a dor do outro como sua,
não há com o que se preocupar. É hora de garantir seu próprio mantra.
Meu corpo estava normal de novo, mas eu
ainda não conseguia fazer nada a não ser concordar.
— Mas, por favor, não esqueça da dor
que sentiu. Lembre-se dela de vez em quando e transforme-a em parte de si. — As
palavras dele foram fundo em meu coração. — Isso é o que torna humanos
diferentes de bestas.
O monge que estava rezando jogou
algumas coisas em formato de pílula e derramou óleo perfumado no altar, fazendo
as chamas aumentarem.
O som dos monges cantando sutras atrás
de mim soavam como o eco de milhares de grilos.
Após me lavar, eu coloquei roupas
brancas como as usadas para vestir cadáveres. Eu sentei atrás dos monges que
rezavam e coloquei minhas mãos juntas.
O ritual continuou sem fim enquanto
minha fadiga aumentava. Deveria ser quase de manhã. Pensamentos bagunçados
levitavam e desapareciam como bolhas. Eu não conseguia mais pensar direito.
(Toda vez que algo era jogado nas chamas,
era como se meus pecados e preocupações fossem queimados, mas o ritual estava
levando tanto tempo que eu pensei que deveria ser uma pessoa com pecados e
preocupações particularmente profundos.)
— Agora, seu coração e corpo foram
purificados o suficiente. Daqui, deixe o último de seus desejos mundanos ser
queimado. — O sacerdote chefe Mushin disse atrás de mim.
Eu me curvei, finalmente estava sendo
liberada.
— Olhe para as chamas. — A voz que ouvi
da escuridão parecia que vinha dos céus. — Olhe para as chamas.
Eu fixei meu olhar no fogo dançante em
cima do altar.
— Tente controlá-las.
— Eu não consigo. — Desde que o
Espírito da Bênção veio, eu não tentei nenhuma vez usar meu cantus.
— Está tudo bem, você consegue. Faça as
chamas balançarem.
Eu encarei o fogo.
— Para a esquerda, para a direita. De
um lado para o outro... um lado para o outro.
Era difícil me concentrar, mas após
algum tempo, meu foco de repente se afiou e as chamas aumentaram. A chama
interior ficou mais e mais brilhante e seu coração quase transparente. As
beiradas estalavam.
Mova. Mova.
Não, não é a chama, eu percebi
subitamente. Fogo é feito de várias partículas brilhantes, mas são muito
espalhadas para ter alguma substância.
Eu tenho que mover o ar.
Percebi que tinha que mover o calor ao
redor das chamas. A corrente cintilante de ar quente.
Eu aumentei minha concentração.
Flua. Flua... mais rápido.
O movimento do calor aumentou
abruptamente.
No próximo instante o fogo estava
balançando de um lado para o outro como se fosse soprado pelo profundo vento.
Eu consegui.
Foi um momento brilhante de sucesso.
Eu não acreditava que tinha conseguido.
Que eu conseguia mover algo com minha própria vontade, sem usar as mãos.
Eu respirei fundo e novamente fui às
chamas com minha consciência.
— É o suficiente. Pare. — Uma voz
severa surgiu.
Minha concentração colapsou como uma
casa de cartas, a imagem que tinha em minha mente foi engolida por trevas.
— Seu último desejo é seu cantus.
Eu não consegui entender o que aquilo
significava na hora.
— Jogue fora todos os seus desejos.
Para serem iluminados, eles devem purgados pelas chamas.
Eu não pude acreditar. Eu havia acabado
de conseguir meu cantus. Por que eu deveria desistir dele?
— Você deve retornar aos deuses o poder
que lhe foi dado pelo céu. De agora em diante, seu cantus será selado neste
emblema humano.
Desobediência não era permitida. Uma
boneca feita de dois pedaços de papel dobrado foi colocada em minha frente. Na
cabeça e no torso havia caracteres misteriosos que parecia em sânscrito.
— Controle o emblema e faça-o levantar.
Esta tarefa era consideravelmente mais
difícil do que a última. Além disso, meu coração estava conflituoso demais para
eu me concentrar.
Mas eventualmente, o emblema esvoaçou e
levantou.
Cabeça de papel. Corpo de papel.
Membros de papel.
Uma figura humana inconfundível.
Eu senti meu próprio corpo se fundir
com o emblema de papel. Eu mandei força para suas pernas, balançando como um
boneco daruma.
A figura de papel se levantou
gentilmente.
Mais uma vez, sentimentos de felicidade
e poder me inundavam.
— Saki Watanabe, seu cantus está
selado! — A voz dele ecoou no templo, destroçando a imagem brilhante que tinha
em minha mente.
Seis longas agulhas assobiaram pelo ar,
furando a cabeça do emblema, seu corpo, braços e pernas.
— Todos os seus desejos foram
queimados. Deixe as cinzas retornarem para a vasta e selvagem terra.
O monge rezando jogou o emblema no
fogo.
O fogo queimou como uma explosão, quase
alcançando o teto.
— Seu cantus foi erradicado.
Petrificada, eu só podia observar os
eventos se desenrolando em minha frente.
— Olhe para as chamas. — O sacerdote
chefe Mushin me comandou. — Você não pode mais controlá-las. Tente. — Sua voz
era apática.
Eu olhei para o fogo, mas dessa vez,
não conseguia ver nada. Não importava o quanto eu tentasse, nada mudava.
Eu nunca poderia adquirir aquele
sentimento de poder novamente? Lágrimas escorreram pelas minhas bochechas.
— Em sua devoção, você abandonou seu
cantus. — Sua voz de repente foi carinhosa e gentil novamente. — Pela compaixão
de Buda, você receberá um mantra puro, um novo espírito e seu cantus, mais uma
vez.
Ele bateu em meus dois ombros com uma
vara zen. Eu inclinei minha cabeça, e o som do cântico aumentou.
O sacerdote chefe Mushin se aproximou para
que eu pudesse ouvir e sussurrou meu novo mantra.
Tendo escrito até aqui, estou
extremamente perplexa.
Não importa o quanto eu tente, não
consigo escrever meu mantra.
Mesmo agora, nossa sociedade coloca
muita importância nos significados de nossos mantras. São palavras oferecidas
para os deuses que são a chave para ativar nosso cantus. Somos avisados para
nunca as usar em vão, para que o poder não se perca.
Por outro lado, essas são só palavras
para o feitiço – sons sem significado. Então revelá-las aqui não deve ser um
problema.
Eu quero entender o raciocínio por trás
disso. Nas partes mais fundas de meu inconsciente é uma defesa natural contra
expor meu mantra. Mesmo agora, eu posso sentir minha mão segurando a caneta
sendo restrita toda vez que tento o escrever.
Então, para aqueles que querem saber o
que um mantra é, eu escrevi um exemplo abaixo.
Namo ākāśagarbhaya oṃ ārya kamari mauli
svāhā.
Aliás, esse é o mantra de Akasagarbha
bodhisattva dado ao Satoru.
O resto de minha iniciação se arrastou
por um longo tempo, então não irei escrevê-la inteira. Quando havia finalmente
acabado, o céu estava brilhando no leste e todos estavam exaustos.
Eu dormi como uma pedra por um dia
inteiro após isso. Quando acordei, passei o dia trabalhando com os sacerdotes estudantes,
e no dia seguinte deixaram eu ir para casa.
O sacerdote chefe Mushin e os outros
monges no Templo da Pureza me desejaram boa sorte e desejaram adeus embaixo das
flores de cerejeira. Eu entrei no barco sem janelas mais uma vez e viajei de
volta para a vila – a jornada apenas levou duas horas dessa vez.
Meus pais me abraçaram fortemente por
um longo período. Houve uma celebração naquela noite; a mesa estava repleta com
todos os meus pratos favoritos. Havia bolinhos de inhame aquecidos no forno, filés
crus de linguado com proteína alterada, uma saborosa sopa de caranguejo
tigre...
Com isso, minha longa infância havia
chegado ao fim. No dia seguinte, eu iniciaria uma nova vida.
A Academia do Sábio, assim como a
Escola da Harmonia, fica em Kayawa, mas muito mais ao norte, perto de
Matsukaze. Meu professor da escola da Harmonia me acompanhou até a construção
de pedra, mas me disse para entrar na classe sozinha. Minha boca estava seca
pela ansiedade.
Imediatamente na direita da porta de
entrada estava o pódio. Na parede a minha frente estava pendurado o lema da
escola. Na minha esquerda havia assentos de estilo teatral, onde mais ou menos
trinta estudantes estavam sentados quietos.
Sr. Endou me levou até o pódio e senti
minhas pernas tremendo ao me aproximar. Nunca eu tinha sido o foco de tantas
pessoas; me senti nua e indefesa.
Eu não tive coragem de olhar para a
classe enquanto estava no pódio. Eu tentei bisbilhotas rapidamente e vi que os
olhos de todos estavam fugindo. Isso me lembrou de algo. Não na Escola da
Harmonia, mas definitivamente de algum outro lugar que já estive. O que era? A
mesma atmosfera tomava conta da classe como uma névoa. Era uma sensação
estranha de deja vu.
— Essa é sua nova colega de classe,
Saki Watanabe. — O Sr. Endou escreveu meu nome no quadro branco. Usando seu
cantus, ele de alguma forma fez as partículas pretas se juntarem no quadro na
forma de palavras.
— Você já é amiga de estudantes da
Escola da Harmonia, certo? Por favor, se dê bem com os de outras escolas
também.
Aplausos se iniciaram pela sala. Eu
percebi que todos estavam tão nervosos quanto eu.
Me sentindo um pouco melhor, olhei para
a classe e vi que Maria, Satoru e Shun estavam acenando para mim.
Vendo mais de perto, percebi que mais
ou menos um terço dos estudantes estavam no mesmo grau que eu na Escola da
Harmonia. Apesar dos estudantes entrarem na academia separadamente, fazia
sentido agrupá-los de acordo com a idade. Perceber isso aliviou minhas
preocupações consideravelmente e pela primeira vez eu me perguntei o que iria
aprender ali.
Durante o intervalo, os outros
estudantes da Escola da Harmonia se juntaram ao meu redor como se estivessem me
esperando o tempo todo.
— Levou algum tempo, né. — Foram as
primeiras palavras de Shun. Se Satoru tivesse dito a mesma coisa, eu teria
batido nele, mas apenas sorri.
— Desculpa por fazer você esperar.
— Sério, eu estava quase cansada de
ficar esperando. — Maria disse, virando minha cabeça para vê-la e esfregando
sua testa contra a minha.
— Eu só floresci tarde. Não é como se
os Espíritos da Bênção que vêm cedo são melhores, certo?
— Verdade, mas você é a última da
Escola da Harmonia. Por qualquer motivo, seu Espírito da Bênção foi muito
indolente. — Satoru disse, completamente desatento de suas próprias
deficiências.
— Vejo que não mudaram nada... — Ao
dizer isso, uma questão surgiu em minha mente. — Espere, última? Isso não é
verdade, ainda havia gente deixada para trás.
Todos ficaram em silêncio e as
expressões ficaram tão brancas como uma máscara de pureza de shinshis.
— ... Nós não estudamos teorias aqui,
aprendemos tarefas práticas. Sabia, estou no topo da classe em manipulação da
água da superfície.
— Mas você é péssimo em troca de força.
— O professor disse que o que importa
agora é a imagem mental.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo.
Tudo soou como balbúrdia para mim. Estavam discutindo sobre as aulas, como se
mostrassem o conhecimento que adquiriram antes de mim. Eu não gostava daquela
sensação. Mas eu caí no hábito que havia sido impregnado em nós, isto é, fingir
que certos tópicos proibidos nunca existiram.
Já que eu não conseguia entender a
conversa, eu ouvi atentamente, e formei uma primeira impressão bem estranha da
classe. Inconfundivelmente, eu senti o mesmo em algum momento, em outro lugar.
Quando o sino tocou e todos voltaram para
seus assentos, eu subitamente lembrei.
— A fazenda de lótus...
Apenas os ouvidos de Satoru captaram
meu murmúrio.
— O que foi?
Após um momento de hesitação, eu
respondi.
— Esta classe me lembra da fazenda.
Lembra? A que fomos na Escola da Harmonia.
Ouvindo as palavras Escola da Harmonia,
a expressão de Satoru se tornou sagaz.
— A Academia do Sábio é como uma
fazenda? Do que você está falando?
— Apenas o sensação é a mesma. — Havia
uma sensação desagradável que eu não conseguia definir.
— Não faço ideia do que você está
falando. — Satoru também pareceu estar de mau humor de repente, mas nossa
conversa terminou ali onde a aula começou.
Fazendas de Lótus, onde tínhamos ido em
uma viagem de campo para a aula de ciências sociais, ficam em Kogane. Como a
nossa graduação estava chegando perto, fomos levados em várias viagens de campo
subitamente. Parecia que queriam que pensássemos sobre que tipo de trabalho
iríamos querer no futuro. A visão dos sítios de produção nos encantou e nos fez
querer crescer logo. Os produtos feitos em nos workshops de cerâmica e vidraria
que eram parte da associação de artesanato eram extraordinários. Quando os
vimos usando o cantus para criar peças de cerâmica incrivelmente fortes e
vidros claros como o ar, nós declaramos que queríamos ser aprendizes lá após
nos graduarmos da Academia do Sábio.
Mas o que nos deixou um maior impacto
foi na nossa última viagem para fazendas de lótus.
As fazendas de lótus são uma série de
fazendas experimentais espalhadas pelas vilas e o maior coletivo de fazendas da
cidade. A primeira que fomos era um arrozal de água salgada em Shirasu. O arroz
que comemos vem dos arrozais em Kogane, mas aqui havia campos de arroz imersos
em água salgada. Usando algo chamado de osmose reversa, eles conseguiam filtrar
o sal da água. Nós provamos o arroz, e para nossa surpresa, era completamente
comestível, com apenas uma pitada de sal.
Na próxima vez, fomos para uma
instalação de sericultura, onde vários dos bichos-da-seda deixavam casulos
coloridos. A fábrica não apenas produzia através desses bichos-da-seda sem
precisar tingir, mas também não enfraqueciam ou perdiam cor quando lavados.
No prédio vizinho havia espécies
estrangeiras usadas como referência para reprodução seletiva. Bichos-da-seda da
Indonésia eram conhecidos por sua seda dourada, bichos-da-seda Tasar da Índia
faziam fios dez vezes mais grossos que o normal, centenas de bichos-da-seda da
Uganda faziam casulos do tamanho de bolas de rúgbi, e mais.
Os melhores eram os bicho-da-seda de
Hitachi deixados em um quarto isolado e hermético. Os bichos com três cabeças
de dois metros estavam comendo um compilado grande de folhas de amoreira e
simultaneamente cuspindo seda de uma de suas três bocas. Era como se houvessem
esquecido que deveriam estar fazendo casulos e apenas jogavam seda por todas as
direções. O interior da janela de observação tinha que ser limpado
frequentemente para parar a seda de a cobrir completamente. O guia da tour
explicou que como os insetos eram muito grandes, eles tinham problemas para
respirar, então o oxigênio era bombeado no recinto. A concentração de oxigênio
era tão alta que se houvesse uma chama aberta próxima, o prédio inteiro iria
explodir, o que é o motivo dos bichos serem deixados em uma sala trancada.
Próxima à fazenda de sericultura havia
campos de batatas, inhames, cebolas, rabanetes, morangos e outras plantas.
Dessa vez era no meio do inverno e alguns dos campos estavam cobertos e bolhas
que pareciam neve. Batatas e inhames eram suscetíveis a danos pela geada, então
quando a temperatura caía demais eles usavam bolhas produzidas por inseto para
manter as plantas quentes. Esses insetos eram originalmente um tipo de pestes
prejudiciais conhecidas como cigarrinhas das raízes, mas foram mutadas para um
uso útil com o cantus.
Os campos também eram protegidos por
grandes vespas em couraças vermelhas brilhantes.
Vespas carmesim eram um híbrido da
feroz vespa gigante e da vespa marrom. Elas comiam exclusivamente insetos
prejudiciais e deixavam os humanos e o gado em paz.
Oposto aos campos, no lado mais longe
da fazenda havia o celeiro.
Eu acho que há um motivo para nunca
termos visitado o celeiro até o final. Ao contrário de plantas e insetos,
animais alterados pelo cantus especificamente para produzir grandes quantidades
de carne, leite e lã eram provavelmente desagradáveis de se ver. Então foi um
alívio quando visitamos o celeiro de gado e vimos apenas vacas normais
alinhadas em nossa frente.
— Que diabos? São só vacas normais.
Era admirável admirar a insensibilidade
de Satoru.
— Não é verdade. — Shun apontou para o
canto do celeiro. — Aquelas não são vacas com bolsas?
Todos viramos para olhar.
— Elas têm bolsas mesmo! — Maria
exclamou.
Entre as pernas traseiras de uma vaca
marrom havia um pequeno balão branco.
— Oh, todas as vacas ali são vacas com
bolsas. — Disse o guia, um homem bem forte cujo nome eu esqueci. Ele parecia
levemente desconfortável, como se tivéssemos tocado em um assunto que ele
preferiria não discutir.
— Por que vocês não tiram as bolsas? —
Satoru perguntou, sem perceber o desconforto do guia.
— Bem... desde os tempos antigos, todos
os fazendeiros disseram que vacas com bolsas tem um sistema imunológico melhor
e resistem a doenças. Estamos tentando determinar se é verdade ou não.
Como não tínhamos visto nenhum animal
alterado em nossas viagens de campo até ali, eu pensei que era natural que
estivéssemos intrigados pelas vacas com bolsa.
Para explicar melhor, eu tenho um livro
chamado “A História Natural das Novas Ilhas do Japão” para referenciar. É
estampado como “confidencial”. É a terceira classe de livros, tratados com
descrição porque eles têm o potencial de ser prejudiciais para a mente de um
leitor. Aqui está uma passagem.
Vacas com bolsa, antes chamadas de
vacas saco, receberam seu nome pela anteriormente mencionada bolsa que possuem.
É uma coincidência interessante que seu nome é similar ao rizocéfalo[1].
Falando em rizocéfalo, é um crustáceo
relacionado à craca de bolota. Parecendo um saco, de onde conseguiu seu nome, à
primeira vista não parece relacionado à crustáceos conhecidos como camarões ou
caranguejos. Essa mudança veio por uma adaptação para parasitar outros
crustáceos, como o caranguejo de luva japonês.
Como um cipride, a rizocéfala fêmea
pega o corpo do caranguejo e entra em um estado infeccioso. Ela então injeta
uma pequena moita de células somáticas no caranguejo. Essas células se grudam
dentro do corpo e então perfuram o abdome e desenvolve seu saco. O saco é um
ovário, e não possui membros ou órgãos digestivos. As células dentro do corpo crescem
como estruturas em raízes que absorvem os nutrientes do caranguejo.
O caranguejo infectado se torna
infértil, um fenômeno chamado de castração parasitária.
(Omitido)
Por outro lado, as vacas e bois saco
são conhecidas por terem tumores nos testículos ou úteros. Como não afetam a
saúde da vaca, acredita-se serem benignos e são deixados de lado. Mas em anos
recentes, foi descoberto que são um organismo independente, como a rizocéfala. Além
do mais, ele se desenvolveu a um ponto onde era parte do animal, criando uma
nova espécie de vaca.
A origem dos sacos é incerta, mas a
teoria que se desenvolveu por acidente é altamente aceita. Isso é ligado à um
embrião de um gêmeo absorvendo o outro, que se torna um tumor.
Larvas de vacas com bolsa são
encontradas em grandes quantidades nos testículos de bois normais. Durante a
temporada de acasalamento, a larva é ejaculada junto com o esperma normal. Elas
têm cerca de quatro centímetros de comprimento, sem orelhas ou olhos, dois
grandes membros anteriores, um corpo similar a uma lagarta, e um ovipositor em
formato de agulha.
A larva se propaga com seus membros
anteriores escalando a vaca hospedeira até acharem uma área onde a pele é fina,
então injetam um punhado de células somáticas. Enquanto as células crescem, um
novo saco se desenvolve, e a vaca hospedeira se torna uma vaca com bolsa.
Conseguindo isso, a larva seca e morre duas horas depois.
À primeira vista, a larva não possui
nenhuma similaridade com as vacas normais, mas ainda pode ser categorizada como
sendo da ordem artiodactyla, da classe bovidae. As garras dos membros
anteriores são separadas como cascos de vaca. Essa é a única característica
restante que mostra que os dois animais compartilham um ancestral.
Há um debate sobre se a vaca com bolsa
está realmente inseminando a vaca hospedeira, ou se está apenas roubando seus
nutrientes para dar à um ovo.
Há um conto popular, ou melhor, uma
lenda urbana, rodeando a vaca com bolsa. Uma vez, a larva foi pega escalando em
uma vaca. Enquanto era removida, soltou um barulho alto que parecia igual ao de
uma vaca. As outras vacas ouviram e ficaram perturbadas, todas chorando ao
mesmo tempo. Este autor teve inúmeras chances de observar uma larva de vacas
com bolsa, mas infelizmente, nenhum choro foi ouvido.
É estranho como nós associamos o poder
milagroso conhecido como cantus com um estranho animal chamado vaca com bolsa,
silenciosamente comendo sua comida.
Provavelmente isso não é porque somos
gerenciados iguais esses animais pela nossa escola, mas porque fomos todos
marcados com uma identidade que ainda não sabíamos sobre.
[1]
Em japonês, a palavra para rizocéfalo também possui a palavra saco.
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