Capítulo 2
Eu vou falar um pouco mais sobre minha
infância.
Em Kamisu 66, crianças precisam iniciar
a escola aos seis anos. A que eu fui era chamada de Escola da Harmonia. Há duas
outras escolas similares chamadas Amizade e Moralidade.
Naquela época, a população era um pouco
maior que três mil. Eu descobri apenas após pesquisar sobre educação no passado
antigo que ter três escolas para uma população tão pequena é aparentemente bem
notável. Mas isso serviu apenas para mostrar que a verdadeira natureza da
sociedade em que nasci era bem mais do que os olhos podiam ver. Sobre as outras
estatísticas nesse mesmo período, mais da metade dos adultos na comunidade
estavam, por qualquer motivo, perseguindo profissões relacionadas à educação.
Isso é inconcebível para uma economia
monetária. Mas para uma comunidade baseada em cooperação mútua, dinheiro não é
necessário. (A propagação de recursos humanos naturalmente se direciona para
áreas em que mais se precisa, e essas pessoas completam as tarefas requeridas.)
A Escola da Harmonia estava a cerca de vinte
minutos andando da minha casa. É ainda mais rápido de barco, mas os remos são
muito grandes e pesados para crianças remarem, então andar é preferível.
A escola fica em um local quieto um
pouco longe do centro da cidade, na borda sul de Kayawa. É uma estrutura única
feita de madeira polida escura no formado de um A. A entrada da frente é a
barra do A. Quando você entra, a primeira coisa que vê é a frase “Preze a
Harmonia” emoldurada na parede. É o primeiro artigo na Constituição de
Dezessete Artigos escrita por um sábio dos tempos antigos chamado Príncipe
Shoutoku. Significa construir tudo em harmonia. É daí que o nome de nossa
escola vem. Eu não sei que ditados estão sendo mostrados nas paredes da Amizade
e da Moralidade.
Junto com a entrada havia as salas dos
professores e as salas de aula. Minha classe estava alinhada no braço direito
do A. Apesar do número de pessoas na escola, incluindo os docentes, não passar
de cento e cinquenta, nós tínhamos vinte salas de aula. A ala administrativa
estava na esquerda e os estudantes não eram autorizados a entrar.
No pátio na frente do prédio estavam os
campos esportivos, ginásios e outros equipamentos de recreio, além de uma cerca
onde criávamos animais como galinhas, coelhos, hamsters e mais. Os estudantes
se revezavam cuidando dos animais. No canto do jardim havia uma caixa de
instrumentos de madeira branca. Ninguém sabe para que serve; nos seis anos que
ficamos na escola, nunca havia sido utilizada.
O pátio rodeado pelos três prédios
escolares era um grande mistério. Estudantes eram estritamente proibidos de
entrar e nunca tivemos uma desculpa para isso.
À parte da ala administrativa, não
havia nenhuma janela que olhasse para o pátio. Então as únicas vezes que
tínhamos a chance de espiar lá dentro era se estivéssemos por perto quando a porta
estivesse aberta.
— ...Então, o que você acha do pátio? —
Satoru perguntou com um sorriso assustador. Todos nós seguramos nossa
respiração.
— Espere, você também não sabe o que
tem lá, né? — Eu não o aguentava arrastando a tensão daquela forma.
— Bem, eu não, mas tem alguém que
sabia. — Satoru disse, parecendo irritado por ter sido interrompido.
— Quem?
— Alguém que você não conhece.
— Não é um estudante?
— Ele já se graduou.
— Tinha que ser. — Eu tornei óbvio que
desacreditava.
— Isso não importa, só diga o que ele
viu logo. — Maria disse. Todos concordaram.
— Ok. Bem, pessoas que não acreditam
não precisam ouvir... — Satoru olhou para mim sorrateiramente. Eu fingi não
perceber. Teria sido melhor sair dali, mas eu realmente queria ouvir o que ele
tinha a dizer.
— Quando estudantes estão presentes, os
professores nunca abrem a porta que leva ao pátio, certo? Você sabe, a que fica
em frente ao prédio da administração feita de madeira perene. Mas naquela
época, eles acidentalmente esqueceram de conferir se havia pessoas em volta e
abriram a porta.
— Você já nos contou sobre isso. — Ken
o pressionou.
— Lá estava... um número gigante de
túmulos! — Ele obviamente estava exagerando, mas todos os outros pareciam
pasmos.
— Uau...
— Mentiroso.
— Isso é assustador. — Maria tapou seus
ouvidos com as mãos. Eu disse que ela estava sendo boba.
— Então, de quem eram aqueles túmulos?
— Huh? — Satoru pareceu gostar do
efeito que a história assustadora dele teve nos outros e foi pego desprevenido.
— Já que tinham tantos, de quem eram?
— Não sei. De qualquer forma, era um
número enorme deles.
— Por que eles colocaram túmulos no
pátio da escola?
— Como eu disse, é só o que eu sei.
Parecia que Satoru estava fugindo do
assunto ao insistir que como ele só havia ouvido a história por outra pessoa,
ele não tinha a resposta de tudo.
— .... Talvez sejam os túmulos de
alunos? — Ken disse, e todo mundo ficou em silêncio.
— Alunos? De quando? Por que tantos
morreram? — Maria perguntar com voz baixa.
— Não tenho certeza, mas ouvi que
algumas pessoas não se graduaram e apenas desapareceram...
Os estudantes nas três escolas de nossa
cidade entravam na escola ao mesmo tempo, mas por alguns motivos que explicarei
depois, se graduavam em épocas diferentes. Mas dessa vez parecia que as
palavras de Ken haviam tocado em um assunto que era um tabu profundo e ninguém
sabia o que dizer.
Naquele momento, Shun, que estava
sentado longe de nós lendo um livro, olhou para nós. Pela luz vindo da janela,
eu percebi que ele possuía cílios muito longos.
— Não há nenhum túmulo.
Todos se aliviaram com suas palavras,
mas então uma grande questão nos ocorreu.
— O que você quer dizer com não tem
nenhum? Como você sabe? — Eu perguntei por todos nós, e Shun respondeu
despreocupadamente.
— Não havia nenhum quando eu vi.
— Huh?
— Shun, você viu?
— Sério?
— Você está brincando, né?
Nós o inundamos de perguntas. Satoru
pareceu desapontado em ter seu momento roubado.
— Acho que nunca mencionei isso antes.
Ano passado, houve um dia que a tarefa de casa não havia sido coletada. Era um
relatório de observação pessoal para a aula de ciências. A professora me pediu
para levá-los quando todos estivessem entregues, então eu fui para a ala
administrativa.
Todos esperamos com a respiração
pausada para ele continuar, mas Shun foi em seu próprio tempo colocando um
marcador de páginas no livro que estava lendo.
— Uma das salas cheia de livros tem uma
janela que dá para o pátio. Havia coisas estranhas lá, mas nenhum túmulo.
Parecia que ele queria que a conversa
acabasse ali. Eu ainda tinha mil perguntas para fazer, então respirei fundo.
— Não seja ridículo. — Satoru disse com
uma voz instável que eu nunca havia ouvido. — O que são essas “coisas
estranhas”? Explica direito.
Você que não queria explicar nada
direito, eu pensei, mas queria ouvir a resposta de Shun, então não interrompi.
— Hm, como eu deveria dizer. Alinhados
no fim do pátio tinham cerca de cinco armazéns feitos de tijolos, com grandes
portas de madeira na frente.
Apesar da resposta dele não explicar
nada, parecia ser verdade. Satoru, sem conseguir pensar em mais nenhuma
pergunta, estalou a língua.
— Então, Satoru, o cara que se graduou,
o que ele disse mesmo? — Eu pressionei. Ele percebeu que a situação se voltou
contra ele e hesitou em responder.
— Como eu disse, eu só ouvi de outra
pessoa, então eu não sei. Talvez ele tenha confundido o que viu, ou talvez
naquela época realmente tivesse túmulos. — Ele se afundou ainda mais no buraco.
— Então por que os túmulos sumiram?
— Eu não faço ideia..., mas você sabia?
O cara viu algo ainda mais assustador que os túmulos. — Satoru encontrou uma
chance de mudar o assunto.
— O que ele viu? — Como esperado, Maria
acreditou.
— Você não pode perguntar diretamente.
Satoru não pensou em nada assustador ainda, então dê tempo a ele. — Eu
provoquei, mas Satoru estava sério.
— Eu não estou mentindo. O cara
realmente viu uma coisa. Não era exatamente no pátio, mas...
— Sim, sim...
— Então, o que ele viu? — Ken não
conseguia mais resistir.
Eu achei que Satoru estaria sorrindo
maliciosamente ao revelar o segredo, mas na realidade sua face se tornou
monótona.
— Uma inacreditavelmente grande sombra
de gato.
Tudo ficou em completo silêncio.
Nesse momento, admirei Satoru por suas
habilidades de oratória. Se houvesse um trabalho para criar histórias
assustadores, ele seria o primeiro a ser contratado. Mas é claro, eu não
consigo pensar em nenhuma sociedade que teria um trabalho tão bobo.
— É um Gato Trapaceiro...? — Quando
Maria perguntou o que todos pensavam, começamos a falar ao mesmo tempo.
— Parece que Gatos Trapaceiros aparecem
muito no ensino fundamental.
— Me pergunto o porquê.
— Não é óbvio? Eles querem as crianças!
— Eles normalmente aparecem de noite no
outono.
— Às vezes eles aparecem na sua casa,
mas perto de meia-noite....
Estávamos simultaneamente com medo e
atraídos pela escuridão. Estávamos obcecados com histórias assustadoras sobre
espíritos do mal nas montanhas e rios, mas dentre todos eles, os Gatos
Trapaceiros eram os que nos faziam tremer de medo. Apesar das histórias que
rondavam as crianças serem bem embelezadas, todos concordavam que os Gatos
Trapaceiros eram grandes como os adultos. Apesar de terem o rosto de um gato,
seus membros eram anormalmente longos, e eles esquivavam-se atrás das crianças
como sombras. Quando chegavam a uma área deserta, os Gatos Trapaceiros abriam
sua boca em cento e oitenta graus e mordiam o pescoço das crianças, para que
não pudessem fugir. Desse jeito, nenhuma gota de sangue seria derramada, então
o corpo da criança nunca seria encontrado, e assim por diante.
— E aí? Onde ele viu o Gato Trapaceiro?
— Eu não sei se era um Gato Trapaceiro
ou não. Tudo que ele viu foi uma sombra. — Satoru disse confiantemente, sua
vergonha de antes havia sido esquecida. — Mas o lugar onde ele viu era muito
perto do pátio.
— Mas onde? Não tem nenhuma forma de
entrar ou sair do pátio pelo lado de fora.
— Não foi do lado de fora.
— Huh? — Eu duvidei do que Satoru
estava dizendo, mas por que eu senti um arrepio correr por minha espinha?
— Foi no fim do corredor na ala administrativa
e desapareceu logo em frente da porta do pátio...
Ninguém conseguia falar nada. Apesar de
eu não querer admitir, Satoru conseguiu o resultado que queria. De qualquer
forma, aquilo não passava de histórias inventadas contadas entre as crianças. Naquela
época, eu ainda acreditava nisso.
Olhando agora, meus dias na Escola da
Harmonia eram bem felizes. Mesmo que fosse só ir para a escola e encontrar meus
amigos, nós não conseguíamos evitar nos divertir todos os dias.
Começando na manhã, nós tínhamos matemática,
linguagem, estudos sociais, ciência e outras aulas chatas, mas os professores
mantinham um olho em todos nós para se assegurar que entendíamos o material, e
pacientemente explicava para aqueles que precisavam de ajuda, então ninguém
ficava para trás. Ao mesmo tempo, nós também tínhamos muitas provas – uma a
cada três dias, se me lembro bem. Mas a maioria não era relacionada ao que
estávamos aprendendo. Eram redações curtas como “Estou triste porque...”, então
não era muito estressante.
Ao invés disso, o que era mais difícil
eram as tarefas de autoexpressão. Apesar de desenhos e esculturas de argila
serem legais, escrever redações diárias era irritante. Mas é provavelmente por
causa dessa prática que eu posso escrever esta história sem muito problema.
Depois das aulas chatas, nós passávamos
a tarde toda brincando. E já que tínhamos dois dias livres nos finais de
semana, ficávamos muito tempo correndo lá fora.
Quando eu entrei na escola da Harmonia,
eu já tinha explorado todos os canais preguiçosamente sinuosos, observando os
tetos de palha das casas, indo até Kogane. Durante o outono, a vila inteira
fica coberta com espigas douradas de arroz, de onde vem seu nome. Mas a vila é
na verdade mais interessante durante a primavera e o verão. Quando você espreitava
os arrozais, poderia ver as aranhas d’água na superfície, as botias e os
peixe-mosquitos nadando embaixo. No fundo, camarões girinos rastejavam,
espalhando lama para se esconderem entre as algas. Nos canais e nos
reservatórios de água das fazendas havia gigantes insetos aquáticos, escorpiões
d’água, gravetos d’água, besouros e outros insetos, assim como carpas e vários
peixes. As crianças mais velhas nos mostraram como usar os fios de algodão e
desidratar lulas para pegar lagostas, e depois de um dia, havíamos pego um
balde cheio delas.
Também havia vários pássaros em Kogane.
Na primavera, os choros das cotovias rodando pelo céu ecoavam por tudo, e no
verão, antes do arroz ser plantado, dezenas de íbis frequentavam os campos para
caçar botias. Íbis acasalavam no inverno e construíam ninhos nas árvores
próximas. As íbis filhote deixavam o ninho no outono seguinte, e mesmo que o
som de seus choros não fosse considerado bonito, a vista de um bando de íbis
rosa claro voando era majestosa. Outros pássaros que víamos constantemente
voando eram milhafres-preto, bulbuls de orelhas marrom, pombas orientais de
peito grande, pardais, corvos e mais.
E apesar de não ser um pássaro, nós
ocasionalmente víamos o Minoshiro. Parecia que eles se perdiam às vezes enquanto
procuravam por plantas e pequenos animais, e saíam da floresta para passear nos
arrozais. Minoshiro não só melhora o solo, mas também come insetos
prejudiciais, então eles são respeitados e tidos como amuletos de sorte pelas
comunidades fazendeiras. Normalmente eles têm um metro de altura, mas alguns
gigantes têm mais de dois metros, com inúmeras antenas agitadas. Pela forma
elegante que se movem, não há dúvida de que são consideradas criaturas divinas.
Outros animais reverenciados são as
cobras albinas e as cobras listradas, as duas são caçadas por Minoshiro. Como
as crenças populares da época se comprometiam entre suas histórias e essa
realidade é um mistério.
Quando os estudantes entravam nos graus
superiores, eles iam em expedições para ver a vila de Kunugibayashi ao oeste,
as dunas de areia na praia Hasaki no sul de Shirasu, e no curso superior do Rio
Tone, onde as flores nasciam o ano todo. Na margem havia pássaros maçarico e
garças com seus bicos vermelhos que voavam de vez em quando. Era divertido procurar
por ninhos de toutinegras entre os juncos da margem do rio, e por ninhos de
Kayanosuzukuri nos picos de montanhas em campos abertos de miscanto. Em
particular, os falsos ovos deixados pelas Kayanosuzukuris eram perfeitos para
pregar peças nas pessoas.
Mas não importava quantos animais
víamos, já que estávamos dentro da Barreira Sagrada, não era natureza de
verdade; era mais como um jardim em miniatura. Basicamente, no passado, os
animais que tínhamos em um zoológico eram provavelmente os mesmos que os do
lado de fora. Os elefantes, leões, girafas e outros animais que víamos são na
verdade mutações criadas por nosso cantus – falsos elefantes, imitações de
leões, falsas girafas – então quando ocorrer de um conseguir fugir de seus
recintos, não haveria possibilidade de visitantes se machucarem.
O ambiente dentro da barreira é
completamente alterado para ser seguro aos humanos. O fato se tornou óbvio
depois, mas antes disso, eu nunca imaginei o porquê podíamos correr à vontade
na natureza sem sermos picados por cobras venenosas ou por insetos. Dentro da
barreira não havia cobras venenosas como víboras ou cobras de trama aneladas.
As únicas cobras que tínhamos eram inofensivas, como cobras japonesas que comem
ratos, cobras de dentes estranhos orientais, cobras japonesas da floresta,
cobras quilha asiáticas e cobras rosa.
Além disso, os vários ciprestes
crescendo na floresta secretavam, em um nível excessivo, uma substância
malcheirosa que matava esporos de mofo, carrapatos, germes e outras coisas
nocivas a nós.
Falando de minha infância, ainda
preciso mencionar as celebrações anuais e rituais que tínhamos. Passados de
geração para geração, esses eventos sazonais criavam um tipo de ritmo em nossas
vidas.
Lembrando agora de cabeça, na primavera
nós tínhamos um ritual para afastar espíritos do mal, um festival de reza para
o sucesso da colheita, e um festival para afastar doenças infecciosas. No
verão, há o festival de verão (festival de monstros), festival do fogo, e uma
festa de lanternas. No outono há um festival no primeiro de agosto, e uma
cerimônia oferecendo aos deuses arroz recém colhido. E os eventos que me
lembram do inverno são o festival de neve, o festival de ano novo e (outro
festival no final do festival de ano novo).
Mas o que está cravado em minha mente é
o ritual usado para afastar espíritos do mal.
Supostamente ele também pode ser
chamado de Festival de Perseguir Demônios (Yarai), mas se isso é verdade ou não
é incerto. É um de nossos festivais mais antigos, com mais de dois mil anos de história.
Na manhã do festival, nós, as crianças,
nos reunimos em um quadrado aberto. Usamos “máscaras de pureza” feitas com
argila úmida e coberta com giz em pó e fizemos o papel de “Shinshi” no ritual.
Desde que eu era criança, me assustava
com essa cerimônia porque duas das máscaras usadas eram excepcionalmente
aterrorizantes.
As duas máscaras representavam
Espíritos Malignos e Demônios do Carma. O rosto do Espírito Maligno tinha um
sorriso sinistro. Depois, quando o banner de informações sobre a cerimônia foi
levantado, eu tentei encontrar a história delas, mas a informação era incerta.
O que eu achei era que a máscara do Espírito Maligno lembrava vagamente a
máscara de cobra de peças Noh antigas. É o final de três estágios de um humano
se tornando um demônio, que vai de bestialização para hannya e depois para
serpente.
Por outro lado, o rosto do Demônio do
Carma era um de medo e angústia, apesar de que suas características eram
confusas e tortas, e às vezes nem parecia humano.
O ritual que faz parte do âmago do
festival funciona mais ou menos assim. Areia branca é espalhada pelo quadrado
com braseiros acesos no canto leste e oeste, enquanto vinte ou trinta shinshis
marcham ao redor das flamas cantando “Demônios, vão-se embora. Demônios, vão-se
embora.” em um ritmo peculiar.
Então o exorcista aparecia vestido com
uma roupa tradicional e carregava uma grande lança em suas mãos. Mas a primeira
coisa que todos notavam era sua máscara dourada com quatro olhos.
O exorcista se junta aos shinshi
cantando e circulando pelo fogo, e espalha feijões em todas as direções para
afastar calamidades e má sorte. Ele também os jogava para os espectadores e as
pessoas usavam suas mãos em forma de concha para pegá-los.
Daqui em diante, a parte aterrorizante
começa. O exorcista se vira para os shinshi sem aviso e joga o resto de seus
feijões neles.
— Impuridade está entre nós! — Ele
grita e os shinshi repetem. No sinal, dois dos shinshi rasgam suas máscaras de
pureza, se revelando como um Espírito Maligno e um Demônio do Carma.
Como um shinshi, essa cena era
assustadora o suficiente para tirar meu fôlego. Uma vez, o shinshi ao meu lado
subitamente se transformou em um Espírito Maligno e o resto dos shinshi se
espalharam como baratas em terror, convencidos de que estavam vendo demônios de
verdade.
— Expulse impureza! — O exorcista grita enquanto leva os dois
demônios com sua lança. Os demônios são colocados em uma demonstração de
resistência, mas quando todos se juntam nos gritos, eles correm e o ritual
acaba.
Eu ainda me lembro da visão do rosto de
Satoru quando ele tirou sua máscara, sentindo calafrios.
— Você está pálido como um fantasma. —
Eu disse, e os lábios sem cor de Satoru tremeram.
— E daí? Você também está.
O que vimos nos olhos um do outro foi
nossos próprios medos ocultos.
Os olhos de Satoru se arregalaram e
empurrou seu queixo contra algo em minhas costas. Eu me virei e vi o exorcista
voltando para o quadrado, desabotoando sua máscara.
O exorcista normalmente é feito por
quem tem o cantus mais poderoso de todos nós. E, até onde eu dei, Shisei
Kaburagi nunca deixou ninguém tirar esse posto dele.
Shisei Kaburagi nos sentiu o encarando
e sorriu levemente. O estranho era o fato de que mesmo depois de tirar a
máscara de exorcista, ele ainda estava usando outra na parte de cima de seu
rosto. É dito que ninguém nunca viu seu rosto verdadeiro. Seu nariz e boca
pareciam simples, mas os óculos escuros escondendo seus olhos dava a ele um ar
intimidador e sinistro.
— Foi assustador? — Ele perguntou em
uma voz ressonante e baixa. Satoru concordou com sua cabeça com um olhar pasmo
em sua face. Os olhos de Shisei Kaburagi continuaram em mim pelo que parecia um
tempo absurdamente longo.
— Você se interessa por muitas coisas,
não é?
Eu travei, sem saber como responder.
— Você terá sorte ou azar? — Shisei
Kaburagi foi embora com a sombra de seu sorriso no rosto.
Por algum tempo ficamos lá parados como
se estivéssemos encantados. Então Satoru suspirou e murmurou “Aquele cara
provavelmente tem o poder e partir a Terra ao meio se ele se concentrar bem...”
Apesar de eu não acreditar nas
besteiras de Satoru, o que ele disse continuou em minha cabeça por um longo
tempo.
Épocas felizes nunca permanecem por
muito tempo.
Minha infância não era exceção, mas o
irônico é que naquela época eu me preocupava que aqueles momentos felizes eram
longos demais.
Como eu disse antes, todos se graduam
da escola da Harmonia em tempos diferentes. O primeiro a se graduar de nossa
classe foi o Shun. Um garoto com notas melhores que as de qualquer outro, e com
a sabedoria e maturidade de um adulto, ele repentinamente desapareceu da nossa
classe um dia. Nosso professor, Sanada, orgulhosamente anunciou sua graduação
para o resto da sala.
Depois disso, meu único desejo era me
formar logo para que pudesse estar na mesma escola que Shun. Entretanto, mesmo
que meus colegas de sala começassem a ir embora um por um, nunca foi a minha
vez. Quando Maria se graduou, eu fui deixada para trás novamente. Não importava
o quanto eu tentasse explicar, as outras pessoas não conseguiam entender como
eu me sentia.
Quando as flores de cerejeira começaram
a murchar, havia apenas cinco dos vinte e cinco estudantes ainda na classe.
Satoru e eu estávamos entre eles. Mesmo Satoru que era normalmente turbulento
parecia deprimido. Toda manhã depois de nos assegurávamos de que ninguém mais
tinha se formado, suspirávamos em alívio e continuávamos nosso dia. Se
possível, gostaríamos de nos formar ao mesmo tempo, mas se não, secretamente
desejávamos ser os primeiros.
Mas meu desejo foi completamente
destruído. Ao entrar em Maio, Satoru, que era minha última esperança,
finalmente se graduou. Mais dois o seguiram quase imediatamente, deixando
apenas dois de nós. Apesar de parecer estranho, eu não consigo lembrar o nome
da pessoa não importando o quanto eu tente. Apesar de ele ter sido o mais
devagar de nossa classe e um estudante completamente normal, eu não acho que
esse seja o motivo de não conseguir lembrar. Acho que é porque eu
inconscientemente reprimi minhas memórias dele.
Durante aquela época, eu me isolava em
meu quarto todos os dias após a escola e não conversava com ninguém. Até meus
pais ficaram preocupados com meu comportamento.
— Não há por que ser impaciente, Saki. —
Minha mãe disse uma noite, acariciando meu cabelo. — Não importa se você se
formar cedo. Eu sei que é solitário porque todos se foram, mas você vai se
reencontrar com eles novamente logo.
— Eu não estou... sozinha nem nada
assim. — Eu disse, me jogando na cama com o rosto para baixo.
— Sabe, se graduar cedo não é nada
especial. Não tem nada a ver com a força ou a qualidade de seu cantus. Eu já te
contei? Que sei pai e eu não nos graduamos tão cedo também.
— Mas vocês não foram os últimos da
classe também, certo?
— Não, mas...
— Eu não quero ser expulsa.
— Não diga isso! — Ela disse em uma voz
severa incomum. — De onde você ouviu isso?
Eu afundei meu rosto no travesseiro e
continuei em silêncio.
— Os deuses decidem quando você deve se
graduar, então tudo que você deve fazer é esperar. Você vai conseguir se juntar
aos outros rapidinho.
— E se...
— Hmm?
— E se eu não conseguir me graduar?
Por um mísero segundo minha mãe estava
sem palavras, mas então ela sorriu brilhantemente e disse “Você estava
preocupada com isso, bobinha? Vai ficar tudo bem. Você definitivamente vai se
graduar, é só questão de tempo.”
— Mas há pessoas que não conseguem, né?
— Sim, mas é uma chance de menos de um
em um milhão.
Eu sentei e nossos olhos se
encontraram. Por algum motivo, minha mãe parecia um pouco abalada.
— É verdade que se você não se graduar,
um Gato Trapaceiro vai te pegar?
— Não seja boba, Gatos Trapaceiros não
existem nesse mundo. Você será adulta logo; se continuar falando coisas como
essa, as pessoas vão rir de você.
— Mas eu vi um.
Naquele instante, uma sombra de medo
inconfundível voou por sua face.
— Do que você está falando? Deve estar
imaginando coisas.
— Eu vi. — Repeti, tentando conseguir
aquela reação novamente para conseguir confirmar o que era. Eu não estava
mentindo. Eu realmente achava que havia visto um uma vez. Mas aconteceu tão
rápido que até eu acreditava que deveria ter imaginado. — Foi antes de eu vir
para casa ontem, durante o pôr do sol. Estava em uma intercessão e vi algo que
parecia um Gato Trapaceiro a cruzando. Mas ele desapareceu instantaneamente.
Minha mãe suspirou.
— Você conhece o ditado “ver fantasmas
no miscanto”? Se continuar pensando em coisas assustadoras, tudo que verá vai
ser assustador. O que você viu era só um gato, ou uma fuinha. É difícil ver as
coisas claramente quando está ficando escuro. — Minha mãe estava agindo
normalmente como antes. Quando ela disse boa noite e apagou as luzes, eu caí no
sono facilmente.
Mas quando abri meus olhos de novo no
meio da noite, todo o sentimento de paz e segurança havia desaparecido.
Meu coração estava batendo como um tambor,
minhas mãos e pés estavam gelados e meu corpo inteiro estava encharcado em
suor. Suor bem desagradável.
Algo sinistro estava arranhando o
lambrim entre o teto e a cobertura. Era quase inaudível, mas parecia como se
painéis estivessem sendo arranhados com garras afiadas.
Será que um Gato Trapaceiro veio me
pegar?
Eu não consegui me mover, como se
estivesse congelada por uma maldição.
Me debatendo para conseguir o controle
novamente, eu vagarosamente me libertei do feitiço. Eu escapei da cama e
escorreguei a porta para abri-la silenciosamente. A luz do luar era derramada
pelo corredor através das janelas. Apesar de ser primavera, os pisos de madeira
embaixo dos meus pés estavam frios.
Só mais um pouco, quase lá. O quarto
dos meus pais estava bem ali no canto. Eu suspirei em alívio quando eu vi uma
luz escapando por debaixo da porta. Quando eu fui abri-la, eu os ouvi
conversando. A voz de minha mãe, cheia de preocupação de forma que nunca havia
ouvido antes. Minha mão parou no ar.
— Estou preocupada. Nesse ritmo, ela
pode...
— Se continuar se preocupando, será só
uma má influência para Saki. — Meu pai disse em uma voz abatida.
— Mas se isso continuar... O Conselho
de Educação começou a se mover?
— Eu não sei.
— É difícil colocar qualquer influência
neles pela biblioteca. Mas você tem privilégios, pode sancionar, então não dá
fazer nada sobre isso?
— O conselho é independente. Eu não
tenho poder para investigá-los, muito menos da posição de pai da Saki.
— Eu não quero perder outra criança!
— Está falando muito alto.
— Mas ela disse que viu um Gato
Trapaceiro!
— Ela provavelmente só imaginou.
— E se for real? O que faremos?
Eu dei um passo para trás. Apesar do
conteúdo da conversa estar além de minhas capacidades, eu entendi claramente
que havia ouvido algo que não deveria.
Tão silenciosamente quanto eu havia ido
para lá, voltei para meu quarto. Havia uma mariposa-imperador azul do tamanho
de minha mão sentada na janela. Parecia como uma mensagem de maus presságios
enviada do submundo. Apesar de eu não estar com frio, meu corpo não parava de
tremer.
O que está havendo?
Pela primeira vez na minha vida eu me
senti vulnerável e sozinha, sem ninguém para me ajudar.
O que está acontecendo comigo?
Um rangido desagradável estava vindo do
teto.
Algo estava se aproximando...
Eu senti algo tão grande quanto o
próprio medo, chegando mais e mais perto.
Ah, está quase aqui.
A mariposa voou e desapareceu na
escuridão.
No próximo instante, a moldura da
janela começou a tremer e chacoalhar, mesmo que não houvesse vento. A
tremedeira ficou mais e mais forte, como se algo do lado de fora estivesse
tentando tirar a janela da moldura.
A porta abriu sozinha e se fechou
novamente com um som alto.
Eu engoli em seco. Estava difícil de
respirar. Eu tentei levar ar até o fundo de meus pulmões. Mas não consegui.
Está vindo. Vindo. Vindo...
De repente, tudo no quarto começou a se
debater violentamente. A cadeira e a mesa começaram a resistir como um cavalo
selvagem, canetas e lápis voaram pelo quarto e furaram através da porta. A cama
flutuou devagar em direção ao teto.
Eu gritei.
Sons de passos apressados vieram do
corredor. Meus pais estavam gritando meu nome. A porta abriu saltando e eles
invadiram o quarto.
— Saki, está tudo bem agora! — Minha
mãe me envolveu em um abraço apertado.
— O que é isso? — Eu gritei.
— Está tudo bem, não se preocupe. É um
espírito de bênção! Finalmente veio até você.”
— Isso?
O monstro invisível destruindo meu
quarto tinha se acalmado lentamente depois de meus pais chegarem.
— Isso significa que você é uma adulta
agora, Saki. — Meu pai disse, com o alívio sendo mostrado em seu sorriso.
— Então, eu...?
— Você se gradua da Escola da Harmonia
hoje. Amanhã, vai entrar na Academia do Sábio.
O livro que estava flutuando preguiçosamente
pelo ar caiu morto no chão. Minha cama saltou e caiu com um baque, como se o
fio a segurando tivesse sido cortado.
Minha mãe me abraçou tão forte que
doeu. “Graças a deus! Não há nada com o que se preocupar mais!”
Enquanto as lágrimas mornas caíam na
minha nuca, uma sensação cheia de alívio me banhou e eu fechei os olhos.
Mas o choro dolorido de minha mãe com
“Eu não quero perder outra criança!” ecoava no fundo de minha mente.
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