Capítulo 2

Eu vou falar um pouco mais sobre minha infância.

Em Kamisu 66, crianças precisam iniciar a escola aos seis anos. A que eu fui era chamada de Escola da Harmonia. Há duas outras escolas similares chamadas Amizade e Moralidade.

Naquela época, a população era um pouco maior que três mil. Eu descobri apenas após pesquisar sobre educação no passado antigo que ter três escolas para uma população tão pequena é aparentemente bem notável. Mas isso serviu apenas para mostrar que a verdadeira natureza da sociedade em que nasci era bem mais do que os olhos podiam ver. Sobre as outras estatísticas nesse mesmo período, mais da metade dos adultos na comunidade estavam, por qualquer motivo, perseguindo profissões relacionadas à educação.

Isso é inconcebível para uma economia monetária. Mas para uma comunidade baseada em cooperação mútua, dinheiro não é necessário. (A propagação de recursos humanos naturalmente se direciona para áreas em que mais se precisa, e essas pessoas completam as tarefas requeridas.)

A Escola da Harmonia estava a cerca de vinte minutos andando da minha casa. É ainda mais rápido de barco, mas os remos são muito grandes e pesados para crianças remarem, então andar é preferível.

A escola fica em um local quieto um pouco longe do centro da cidade, na borda sul de Kayawa. É uma estrutura única feita de madeira polida escura no formado de um A. A entrada da frente é a barra do A. Quando você entra, a primeira coisa que vê é a frase “Preze a Harmonia” emoldurada na parede. É o primeiro artigo na Constituição de Dezessete Artigos escrita por um sábio dos tempos antigos chamado Príncipe Shoutoku. Significa construir tudo em harmonia. É daí que o nome de nossa escola vem. Eu não sei que ditados estão sendo mostrados nas paredes da Amizade e da Moralidade.

Junto com a entrada havia as salas dos professores e as salas de aula. Minha classe estava alinhada no braço direito do A. Apesar do número de pessoas na escola, incluindo os docentes, não passar de cento e cinquenta, nós tínhamos vinte salas de aula. A ala administrativa estava na esquerda e os estudantes não eram autorizados a entrar.

No pátio na frente do prédio estavam os campos esportivos, ginásios e outros equipamentos de recreio, além de uma cerca onde criávamos animais como galinhas, coelhos, hamsters e mais. Os estudantes se revezavam cuidando dos animais. No canto do jardim havia uma caixa de instrumentos de madeira branca. Ninguém sabe para que serve; nos seis anos que ficamos na escola, nunca havia sido utilizada.

O pátio rodeado pelos três prédios escolares era um grande mistério. Estudantes eram estritamente proibidos de entrar e nunca tivemos uma desculpa para isso.

À parte da ala administrativa, não havia nenhuma janela que olhasse para o pátio. Então as únicas vezes que tínhamos a chance de espiar lá dentro era se estivéssemos por perto quando a porta estivesse aberta.

— ...Então, o que você acha do pátio? — Satoru perguntou com um sorriso assustador. Todos nós seguramos nossa respiração.

— Espere, você também não sabe o que tem lá, né? — Eu não o aguentava arrastando a tensão daquela forma.

— Bem, eu não, mas tem alguém que sabia. — Satoru disse, parecendo irritado por ter sido interrompido.

— Quem?

— Alguém que você não conhece.

— Não é um estudante?

— Ele já se graduou.

— Tinha que ser. — Eu tornei óbvio que desacreditava.

— Isso não importa, só diga o que ele viu logo. — Maria disse. Todos concordaram.

— Ok. Bem, pessoas que não acreditam não precisam ouvir... — Satoru olhou para mim sorrateiramente. Eu fingi não perceber. Teria sido melhor sair dali, mas eu realmente queria ouvir o que ele tinha a dizer.

— Quando estudantes estão presentes, os professores nunca abrem a porta que leva ao pátio, certo? Você sabe, a que fica em frente ao prédio da administração feita de madeira perene. Mas naquela época, eles acidentalmente esqueceram de conferir se havia pessoas em volta e abriram a porta.

— Você já nos contou sobre isso. — Ken o pressionou.

— Lá estava... um número gigante de túmulos! — Ele obviamente estava exagerando, mas todos os outros pareciam pasmos.

— Uau...

— Mentiroso.

— Isso é assustador. — Maria tapou seus ouvidos com as mãos. Eu disse que ela estava sendo boba.

— Então, de quem eram aqueles túmulos?

— Huh? — Satoru pareceu gostar do efeito que a história assustadora dele teve nos outros e foi pego desprevenido.

— Já que tinham tantos, de quem eram?

— Não sei. De qualquer forma, era um número enorme deles.

— Por que eles colocaram túmulos no pátio da escola?

— Como eu disse, é só o que eu sei.

Parecia que Satoru estava fugindo do assunto ao insistir que como ele só havia ouvido a história por outra pessoa, ele não tinha a resposta de tudo.

— .... Talvez sejam os túmulos de alunos? — Ken disse, e todo mundo ficou em silêncio.

— Alunos? De quando? Por que tantos morreram? — Maria perguntar com voz baixa.

— Não tenho certeza, mas ouvi que algumas pessoas não se graduaram e apenas desapareceram...

Os estudantes nas três escolas de nossa cidade entravam na escola ao mesmo tempo, mas por alguns motivos que explicarei depois, se graduavam em épocas diferentes. Mas dessa vez parecia que as palavras de Ken haviam tocado em um assunto que era um tabu profundo e ninguém sabia o que dizer.

Naquele momento, Shun, que estava sentado longe de nós lendo um livro, olhou para nós. Pela luz vindo da janela, eu percebi que ele possuía cílios muito longos.

— Não há nenhum túmulo.

Todos se aliviaram com suas palavras, mas então uma grande questão nos ocorreu.

— O que você quer dizer com não tem nenhum? Como você sabe? — Eu perguntei por todos nós, e Shun respondeu despreocupadamente.

— Não havia nenhum quando eu vi.

— Huh?

— Shun, você viu?

— Sério?

— Você está brincando, né?

Nós o inundamos de perguntas. Satoru pareceu desapontado em ter seu momento roubado.

— Acho que nunca mencionei isso antes. Ano passado, houve um dia que a tarefa de casa não havia sido coletada. Era um relatório de observação pessoal para a aula de ciências. A professora me pediu para levá-los quando todos estivessem entregues, então eu fui para a ala administrativa.

Todos esperamos com a respiração pausada para ele continuar, mas Shun foi em seu próprio tempo colocando um marcador de páginas no livro que estava lendo.

— Uma das salas cheia de livros tem uma janela que dá para o pátio. Havia coisas estranhas lá, mas nenhum túmulo.

Parecia que ele queria que a conversa acabasse ali. Eu ainda tinha mil perguntas para fazer, então respirei fundo.

— Não seja ridículo. — Satoru disse com uma voz instável que eu nunca havia ouvido. — O que são essas “coisas estranhas”? Explica direito.

Você que não queria explicar nada direito, eu pensei, mas queria ouvir a resposta de Shun, então não interrompi.

— Hm, como eu deveria dizer. Alinhados no fim do pátio tinham cerca de cinco armazéns feitos de tijolos, com grandes portas de madeira na frente.

Apesar da resposta dele não explicar nada, parecia ser verdade. Satoru, sem conseguir pensar em mais nenhuma pergunta, estalou a língua.

— Então, Satoru, o cara que se graduou, o que ele disse mesmo? — Eu pressionei. Ele percebeu que a situação se voltou contra ele e hesitou em responder.

— Como eu disse, eu só ouvi de outra pessoa, então eu não sei. Talvez ele tenha confundido o que viu, ou talvez naquela época realmente tivesse túmulos. — Ele se afundou ainda mais no buraco.

— Então por que os túmulos sumiram?

— Eu não faço ideia..., mas você sabia? O cara viu algo ainda mais assustador que os túmulos. — Satoru encontrou uma chance de mudar o assunto.

— O que ele viu? — Como esperado, Maria acreditou.

— Você não pode perguntar diretamente. Satoru não pensou em nada assustador ainda, então dê tempo a ele. — Eu provoquei, mas Satoru estava sério.

— Eu não estou mentindo. O cara realmente viu uma coisa. Não era exatamente no pátio, mas...

— Sim, sim...

— Então, o que ele viu? — Ken não conseguia mais resistir.

Eu achei que Satoru estaria sorrindo maliciosamente ao revelar o segredo, mas na realidade sua face se tornou monótona.

— Uma inacreditavelmente grande sombra de gato.

Tudo ficou em completo silêncio.

Nesse momento, admirei Satoru por suas habilidades de oratória. Se houvesse um trabalho para criar histórias assustadores, ele seria o primeiro a ser contratado. Mas é claro, eu não consigo pensar em nenhuma sociedade que teria um trabalho tão bobo.

— É um Gato Trapaceiro...? — Quando Maria perguntou o que todos pensavam, começamos a falar ao mesmo tempo.

— Parece que Gatos Trapaceiros aparecem muito no ensino fundamental.

— Me pergunto o porquê.

— Não é óbvio? Eles querem as crianças!

— Eles normalmente aparecem de noite no outono.

— Às vezes eles aparecem na sua casa, mas perto de meia-noite....

Estávamos simultaneamente com medo e atraídos pela escuridão. Estávamos obcecados com histórias assustadoras sobre espíritos do mal nas montanhas e rios, mas dentre todos eles, os Gatos Trapaceiros eram os que nos faziam tremer de medo. Apesar das histórias que rondavam as crianças serem bem embelezadas, todos concordavam que os Gatos Trapaceiros eram grandes como os adultos. Apesar de terem o rosto de um gato, seus membros eram anormalmente longos, e eles esquivavam-se atrás das crianças como sombras. Quando chegavam a uma área deserta, os Gatos Trapaceiros abriam sua boca em cento e oitenta graus e mordiam o pescoço das crianças, para que não pudessem fugir. Desse jeito, nenhuma gota de sangue seria derramada, então o corpo da criança nunca seria encontrado, e assim por diante.

— E aí? Onde ele viu o Gato Trapaceiro?

— Eu não sei se era um Gato Trapaceiro ou não. Tudo que ele viu foi uma sombra. — Satoru disse confiantemente, sua vergonha de antes havia sido esquecida. — Mas o lugar onde ele viu era muito perto do pátio.

— Mas onde? Não tem nenhuma forma de entrar ou sair do pátio pelo lado de fora.

— Não foi do lado de fora.

— Huh? — Eu duvidei do que Satoru estava dizendo, mas por que eu senti um arrepio correr por minha espinha?

— Foi no fim do corredor na ala administrativa e desapareceu logo em frente da porta do pátio...

Ninguém conseguia falar nada. Apesar de eu não querer admitir, Satoru conseguiu o resultado que queria. De qualquer forma, aquilo não passava de histórias inventadas contadas entre as crianças. Naquela época, eu ainda acreditava nisso.

Olhando agora, meus dias na Escola da Harmonia eram bem felizes. Mesmo que fosse só ir para a escola e encontrar meus amigos, nós não conseguíamos evitar nos divertir todos os dias.

Começando na manhã, nós tínhamos matemática, linguagem, estudos sociais, ciência e outras aulas chatas, mas os professores mantinham um olho em todos nós para se assegurar que entendíamos o material, e pacientemente explicava para aqueles que precisavam de ajuda, então ninguém ficava para trás. Ao mesmo tempo, nós também tínhamos muitas provas – uma a cada três dias, se me lembro bem. Mas a maioria não era relacionada ao que estávamos aprendendo. Eram redações curtas como “Estou triste porque...”, então não era muito estressante.

Ao invés disso, o que era mais difícil eram as tarefas de autoexpressão. Apesar de desenhos e esculturas de argila serem legais, escrever redações diárias era irritante. Mas é provavelmente por causa dessa prática que eu posso escrever esta história sem muito problema.

Depois das aulas chatas, nós passávamos a tarde toda brincando. E já que tínhamos dois dias livres nos finais de semana, ficávamos muito tempo correndo lá fora.

Quando eu entrei na escola da Harmonia, eu já tinha explorado todos os canais preguiçosamente sinuosos, observando os tetos de palha das casas, indo até Kogane. Durante o outono, a vila inteira fica coberta com espigas douradas de arroz, de onde vem seu nome. Mas a vila é na verdade mais interessante durante a primavera e o verão. Quando você espreitava os arrozais, poderia ver as aranhas d’água na superfície, as botias e os peixe-mosquitos nadando embaixo. No fundo, camarões girinos rastejavam, espalhando lama para se esconderem entre as algas. Nos canais e nos reservatórios de água das fazendas havia gigantes insetos aquáticos, escorpiões d’água, gravetos d’água, besouros e outros insetos, assim como carpas e vários peixes. As crianças mais velhas nos mostraram como usar os fios de algodão e desidratar lulas para pegar lagostas, e depois de um dia, havíamos pego um balde cheio delas.

Também havia vários pássaros em Kogane. Na primavera, os choros das cotovias rodando pelo céu ecoavam por tudo, e no verão, antes do arroz ser plantado, dezenas de íbis frequentavam os campos para caçar botias. Íbis acasalavam no inverno e construíam ninhos nas árvores próximas. As íbis filhote deixavam o ninho no outono seguinte, e mesmo que o som de seus choros não fosse considerado bonito, a vista de um bando de íbis rosa claro voando era majestosa. Outros pássaros que víamos constantemente voando eram milhafres-preto, bulbuls de orelhas marrom, pombas orientais de peito grande, pardais, corvos e mais.

E apesar de não ser um pássaro, nós ocasionalmente víamos o Minoshiro. Parecia que eles se perdiam às vezes enquanto procuravam por plantas e pequenos animais, e saíam da floresta para passear nos arrozais. Minoshiro não só melhora o solo, mas também come insetos prejudiciais, então eles são respeitados e tidos como amuletos de sorte pelas comunidades fazendeiras. Normalmente eles têm um metro de altura, mas alguns gigantes têm mais de dois metros, com inúmeras antenas agitadas. Pela forma elegante que se movem, não há dúvida de que são consideradas criaturas divinas.

Outros animais reverenciados são as cobras albinas e as cobras listradas, as duas são caçadas por Minoshiro. Como as crenças populares da época se comprometiam entre suas histórias e essa realidade é um mistério.

Quando os estudantes entravam nos graus superiores, eles iam em expedições para ver a vila de Kunugibayashi ao oeste, as dunas de areia na praia Hasaki no sul de Shirasu, e no curso superior do Rio Tone, onde as flores nasciam o ano todo. Na margem havia pássaros maçarico e garças com seus bicos vermelhos que voavam de vez em quando. Era divertido procurar por ninhos de toutinegras entre os juncos da margem do rio, e por ninhos de Kayanosuzukuri nos picos de montanhas em campos abertos de miscanto. Em particular, os falsos ovos deixados pelas Kayanosuzukuris eram perfeitos para pregar peças nas pessoas.

Mas não importava quantos animais víamos, já que estávamos dentro da Barreira Sagrada, não era natureza de verdade; era mais como um jardim em miniatura. Basicamente, no passado, os animais que tínhamos em um zoológico eram provavelmente os mesmos que os do lado de fora. Os elefantes, leões, girafas e outros animais que víamos são na verdade mutações criadas por nosso cantus – falsos elefantes, imitações de leões, falsas girafas – então quando ocorrer de um conseguir fugir de seus recintos, não haveria possibilidade de visitantes se machucarem.

O ambiente dentro da barreira é completamente alterado para ser seguro aos humanos. O fato se tornou óbvio depois, mas antes disso, eu nunca imaginei o porquê podíamos correr à vontade na natureza sem sermos picados por cobras venenosas ou por insetos. Dentro da barreira não havia cobras venenosas como víboras ou cobras de trama aneladas. As únicas cobras que tínhamos eram inofensivas, como cobras japonesas que comem ratos, cobras de dentes estranhos orientais, cobras japonesas da floresta, cobras quilha asiáticas e cobras rosa.

Além disso, os vários ciprestes crescendo na floresta secretavam, em um nível excessivo, uma substância malcheirosa que matava esporos de mofo, carrapatos, germes e outras coisas nocivas a nós.

Falando de minha infância, ainda preciso mencionar as celebrações anuais e rituais que tínhamos. Passados de geração para geração, esses eventos sazonais criavam um tipo de ritmo em nossas vidas.

Lembrando agora de cabeça, na primavera nós tínhamos um ritual para afastar espíritos do mal, um festival de reza para o sucesso da colheita, e um festival para afastar doenças infecciosas. No verão, há o festival de verão (festival de monstros), festival do fogo, e uma festa de lanternas. No outono há um festival no primeiro de agosto, e uma cerimônia oferecendo aos deuses arroz recém colhido. E os eventos que me lembram do inverno são o festival de neve, o festival de ano novo e (outro festival no final do festival de ano novo).

Mas o que está cravado em minha mente é o ritual usado para afastar espíritos do mal.

Supostamente ele também pode ser chamado de Festival de Perseguir Demônios (Yarai), mas se isso é verdade ou não é incerto. É um de nossos festivais mais antigos, com mais de dois mil anos de história.

Na manhã do festival, nós, as crianças, nos reunimos em um quadrado aberto. Usamos “máscaras de pureza” feitas com argila úmida e coberta com giz em pó e fizemos o papel de “Shinshi” no ritual.

Desde que eu era criança, me assustava com essa cerimônia porque duas das máscaras usadas eram excepcionalmente aterrorizantes.

As duas máscaras representavam Espíritos Malignos e Demônios do Carma. O rosto do Espírito Maligno tinha um sorriso sinistro. Depois, quando o banner de informações sobre a cerimônia foi levantado, eu tentei encontrar a história delas, mas a informação era incerta. O que eu achei era que a máscara do Espírito Maligno lembrava vagamente a máscara de cobra de peças Noh antigas. É o final de três estágios de um humano se tornando um demônio, que vai de bestialização para hannya e depois para serpente.

Por outro lado, o rosto do Demônio do Carma era um de medo e angústia, apesar de que suas características eram confusas e tortas, e às vezes nem parecia humano.

O ritual que faz parte do âmago do festival funciona mais ou menos assim. Areia branca é espalhada pelo quadrado com braseiros acesos no canto leste e oeste, enquanto vinte ou trinta shinshis marcham ao redor das flamas cantando “Demônios, vão-se embora. Demônios, vão-se embora.” em um ritmo peculiar.

Então o exorcista aparecia vestido com uma roupa tradicional e carregava uma grande lança em suas mãos. Mas a primeira coisa que todos notavam era sua máscara dourada com quatro olhos.

O exorcista se junta aos shinshi cantando e circulando pelo fogo, e espalha feijões em todas as direções para afastar calamidades e má sorte. Ele também os jogava para os espectadores e as pessoas usavam suas mãos em forma de concha para pegá-los.

Daqui em diante, a parte aterrorizante começa. O exorcista se vira para os shinshi sem aviso e joga o resto de seus feijões neles.

— Impuridade está entre nós! — Ele grita e os shinshi repetem. No sinal, dois dos shinshi rasgam suas máscaras de pureza, se revelando como um Espírito Maligno e um Demônio do Carma.

Como um shinshi, essa cena era assustadora o suficiente para tirar meu fôlego. Uma vez, o shinshi ao meu lado subitamente se transformou em um Espírito Maligno e o resto dos shinshi se espalharam como baratas em terror, convencidos de que estavam vendo demônios de verdade.

— Expulse impureza!  — O exorcista grita enquanto leva os dois demônios com sua lança. Os demônios são colocados em uma demonstração de resistência, mas quando todos se juntam nos gritos, eles correm e o ritual acaba.

Eu ainda me lembro da visão do rosto de Satoru quando ele tirou sua máscara, sentindo calafrios.

— Você está pálido como um fantasma. — Eu disse, e os lábios sem cor de Satoru tremeram.

— E daí? Você também está.

O que vimos nos olhos um do outro foi nossos próprios medos ocultos.

Os olhos de Satoru se arregalaram e empurrou seu queixo contra algo em minhas costas. Eu me virei e vi o exorcista voltando para o quadrado, desabotoando sua máscara.

O exorcista normalmente é feito por quem tem o cantus mais poderoso de todos nós. E, até onde eu dei, Shisei Kaburagi nunca deixou ninguém tirar esse posto dele.

Shisei Kaburagi nos sentiu o encarando e sorriu levemente. O estranho era o fato de que mesmo depois de tirar a máscara de exorcista, ele ainda estava usando outra na parte de cima de seu rosto. É dito que ninguém nunca viu seu rosto verdadeiro. Seu nariz e boca pareciam simples, mas os óculos escuros escondendo seus olhos dava a ele um ar intimidador e sinistro.

— Foi assustador? — Ele perguntou em uma voz ressonante e baixa. Satoru concordou com sua cabeça com um olhar pasmo em sua face. Os olhos de Shisei Kaburagi continuaram em mim pelo que parecia um tempo absurdamente longo.

— Você se interessa por muitas coisas, não é?

Eu travei, sem saber como responder.

— Você terá sorte ou azar? — Shisei Kaburagi foi embora com a sombra de seu sorriso no rosto.

Por algum tempo ficamos lá parados como se estivéssemos encantados. Então Satoru suspirou e murmurou “Aquele cara provavelmente tem o poder e partir a Terra ao meio se ele se concentrar bem...”

Apesar de eu não acreditar nas besteiras de Satoru, o que ele disse continuou em minha cabeça por um longo tempo.

 

Épocas felizes nunca permanecem por muito tempo.

Minha infância não era exceção, mas o irônico é que naquela época eu me preocupava que aqueles momentos felizes eram longos demais.

Como eu disse antes, todos se graduam da escola da Harmonia em tempos diferentes. O primeiro a se graduar de nossa classe foi o Shun. Um garoto com notas melhores que as de qualquer outro, e com a sabedoria e maturidade de um adulto, ele repentinamente desapareceu da nossa classe um dia. Nosso professor, Sanada, orgulhosamente anunciou sua graduação para o resto da sala.

Depois disso, meu único desejo era me formar logo para que pudesse estar na mesma escola que Shun. Entretanto, mesmo que meus colegas de sala começassem a ir embora um por um, nunca foi a minha vez. Quando Maria se graduou, eu fui deixada para trás novamente. Não importava o quanto eu tentasse explicar, as outras pessoas não conseguiam entender como eu me sentia.

Quando as flores de cerejeira começaram a murchar, havia apenas cinco dos vinte e cinco estudantes ainda na classe. Satoru e eu estávamos entre eles. Mesmo Satoru que era normalmente turbulento parecia deprimido. Toda manhã depois de nos assegurávamos de que ninguém mais tinha se formado, suspirávamos em alívio e continuávamos nosso dia. Se possível, gostaríamos de nos formar ao mesmo tempo, mas se não, secretamente desejávamos ser os primeiros.

Mas meu desejo foi completamente destruído. Ao entrar em Maio, Satoru, que era minha última esperança, finalmente se graduou. Mais dois o seguiram quase imediatamente, deixando apenas dois de nós. Apesar de parecer estranho, eu não consigo lembrar o nome da pessoa não importando o quanto eu tente. Apesar de ele ter sido o mais devagar de nossa classe e um estudante completamente normal, eu não acho que esse seja o motivo de não conseguir lembrar. Acho que é porque eu inconscientemente reprimi minhas memórias dele.

Durante aquela época, eu me isolava em meu quarto todos os dias após a escola e não conversava com ninguém. Até meus pais ficaram preocupados com meu comportamento.

— Não há por que ser impaciente, Saki. — Minha mãe disse uma noite, acariciando meu cabelo. — Não importa se você se formar cedo. Eu sei que é solitário porque todos se foram, mas você vai se reencontrar com eles novamente logo.

— Eu não estou... sozinha nem nada assim. — Eu disse, me jogando na cama com o rosto para baixo.

— Sabe, se graduar cedo não é nada especial. Não tem nada a ver com a força ou a qualidade de seu cantus. Eu já te contei? Que sei pai e eu não nos graduamos tão cedo também.

— Mas vocês não foram os últimos da classe também, certo?

— Não, mas...

— Eu não quero ser expulsa.

— Não diga isso! — Ela disse em uma voz severa incomum. — De onde você ouviu isso?

Eu afundei meu rosto no travesseiro e continuei em silêncio.

— Os deuses decidem quando você deve se graduar, então tudo que você deve fazer é esperar. Você vai conseguir se juntar aos outros rapidinho.

— E se...

— Hmm?

— E se eu não conseguir me graduar?

Por um mísero segundo minha mãe estava sem palavras, mas então ela sorriu brilhantemente e disse “Você estava preocupada com isso, bobinha? Vai ficar tudo bem. Você definitivamente vai se graduar, é só questão de tempo.”

— Mas há pessoas que não conseguem, né?

— Sim, mas é uma chance de menos de um em um milhão.

Eu sentei e nossos olhos se encontraram. Por algum motivo, minha mãe parecia um pouco abalada.

— É verdade que se você não se graduar, um Gato Trapaceiro vai te pegar?

— Não seja boba, Gatos Trapaceiros não existem nesse mundo. Você será adulta logo; se continuar falando coisas como essa, as pessoas vão rir de você.

— Mas eu vi um.

Naquele instante, uma sombra de medo inconfundível voou por sua face.

— Do que você está falando? Deve estar imaginando coisas.

— Eu vi. — Repeti, tentando conseguir aquela reação novamente para conseguir confirmar o que era. Eu não estava mentindo. Eu realmente achava que havia visto um uma vez. Mas aconteceu tão rápido que até eu acreditava que deveria ter imaginado. — Foi antes de eu vir para casa ontem, durante o pôr do sol. Estava em uma intercessão e vi algo que parecia um Gato Trapaceiro a cruzando. Mas ele desapareceu instantaneamente.

Minha mãe suspirou.

— Você conhece o ditado “ver fantasmas no miscanto”? Se continuar pensando em coisas assustadoras, tudo que verá vai ser assustador. O que você viu era só um gato, ou uma fuinha. É difícil ver as coisas claramente quando está ficando escuro. — Minha mãe estava agindo normalmente como antes. Quando ela disse boa noite e apagou as luzes, eu caí no sono facilmente.

Mas quando abri meus olhos de novo no meio da noite, todo o sentimento de paz e segurança havia desaparecido.

Meu coração estava batendo como um tambor, minhas mãos e pés estavam gelados e meu corpo inteiro estava encharcado em suor. Suor bem desagradável.

Algo sinistro estava arranhando o lambrim entre o teto e a cobertura. Era quase inaudível, mas parecia como se painéis estivessem sendo arranhados com garras afiadas.

Será que um Gato Trapaceiro veio me pegar?

Eu não consegui me mover, como se estivesse congelada por uma maldição.

Me debatendo para conseguir o controle novamente, eu vagarosamente me libertei do feitiço. Eu escapei da cama e escorreguei a porta para abri-la silenciosamente. A luz do luar era derramada pelo corredor através das janelas. Apesar de ser primavera, os pisos de madeira embaixo dos meus pés estavam frios.

Só mais um pouco, quase lá. O quarto dos meus pais estava bem ali no canto. Eu suspirei em alívio quando eu vi uma luz escapando por debaixo da porta. Quando eu fui abri-la, eu os ouvi conversando. A voz de minha mãe, cheia de preocupação de forma que nunca havia ouvido antes. Minha mão parou no ar.

— Estou preocupada. Nesse ritmo, ela pode...

— Se continuar se preocupando, será só uma má influência para Saki. — Meu pai disse em uma voz abatida.

— Mas se isso continuar... O Conselho de Educação começou a se mover?

— Eu não sei.

— É difícil colocar qualquer influência neles pela biblioteca. Mas você tem privilégios, pode sancionar, então não dá fazer nada sobre isso?

— O conselho é independente. Eu não tenho poder para investigá-los, muito menos da posição de pai da Saki.

— Eu não quero perder outra criança!

— Está falando muito alto.

— Mas ela disse que viu um Gato Trapaceiro!

— Ela provavelmente só imaginou.

— E se for real? O que faremos?

Eu dei um passo para trás. Apesar do conteúdo da conversa estar além de minhas capacidades, eu entendi claramente que havia ouvido algo que não deveria.

Tão silenciosamente quanto eu havia ido para lá, voltei para meu quarto. Havia uma mariposa-imperador azul do tamanho de minha mão sentada na janela. Parecia como uma mensagem de maus presságios enviada do submundo. Apesar de eu não estar com frio, meu corpo não parava de tremer.

O que está havendo?

Pela primeira vez na minha vida eu me senti vulnerável e sozinha, sem ninguém para me ajudar.

O que está acontecendo comigo?

Um rangido desagradável estava vindo do teto.

Algo estava se aproximando...

Eu senti algo tão grande quanto o próprio medo, chegando mais e mais perto.

Ah, está quase aqui.

A mariposa voou e desapareceu na escuridão.

No próximo instante, a moldura da janela começou a tremer e chacoalhar, mesmo que não houvesse vento. A tremedeira ficou mais e mais forte, como se algo do lado de fora estivesse tentando tirar a janela da moldura.

A porta abriu sozinha e se fechou novamente com um som alto.

Eu engoli em seco. Estava difícil de respirar. Eu tentei levar ar até o fundo de meus pulmões. Mas não consegui. Está vindo. Vindo. Vindo...

De repente, tudo no quarto começou a se debater violentamente. A cadeira e a mesa começaram a resistir como um cavalo selvagem, canetas e lápis voaram pelo quarto e furaram através da porta. A cama flutuou devagar em direção ao teto.

Eu gritei.

Sons de passos apressados vieram do corredor. Meus pais estavam gritando meu nome. A porta abriu saltando e eles invadiram o quarto.

— Saki, está tudo bem agora! — Minha mãe me envolveu em um abraço apertado.

— O que é isso? — Eu gritei.

— Está tudo bem, não se preocupe. É um espírito de bênção! Finalmente veio até você.”

— Isso?

O monstro invisível destruindo meu quarto tinha se acalmado lentamente depois de meus pais chegarem.

— Isso significa que você é uma adulta agora, Saki. — Meu pai disse, com o alívio sendo mostrado em seu sorriso.

— Então, eu...?

— Você se gradua da Escola da Harmonia hoje. Amanhã, vai entrar na Academia do Sábio.

O livro que estava flutuando preguiçosamente pelo ar caiu morto no chão. Minha cama saltou e caiu com um baque, como se o fio a segurando tivesse sido cortado.

Minha mãe me abraçou tão forte que doeu. “Graças a deus! Não há nada com o que se preocupar mais!”

Enquanto as lágrimas mornas caíam na minha nuca, uma sensação cheia de alívio me banhou e eu fechei os olhos.

Mas o choro dolorido de minha mãe com “Eu não quero perder outra criança!” ecoava no fundo de minha mente.