Parte 01: Estação das Novas Folhas

 

Capítulo 1

Tarde da noite, depois de tudo ficar em silêncio, eu afundei na cadeira e fechei meus olhos.

A cena que surge do fundo da minha mente é sempre a mesma, estampada permanentemente no meu cérebro.

Na escuridão dos fundos do templo, uma chama queima acima do altar. Faíscas estouram do fogo como flocos de neve laranja, interrompendo o som do cântico vindo de baixo da terra.

Toda vez eu me pergunto o porquê desta cena.

Desde aquela noite quando eu tinha doze anos, vinte e três anos se passaram. Naquela época, várias coisas aconteceram. (Incidentes mais tristes e mais aterrorizantes do que eu poderia imaginar.) Eles iriam arrancar pela raiz tudo que eu acreditava até então.

E, mesmo agora, por que é que aquela noite é sempre a primeira coisa que vem na minha cabeça?

Sugestão hipnótica é tão poderosa assim?

De vez em quando, eu ainda tenho o sentimento de que eu ainda não acordei completamente da lavagem cerebral.

Agora, meus motivos para registrar esta corrente de circunstâncias rodeando aqueles eventos é como está a seguir.

Várias coisas voltaram ao pó, e desde aquele dia, dez anos se passaram.

Um período de dez anos não significa muito na grande teia dos acontecimentos. Mas problemas aumentaram, e ironicamente, quando a nova ordem foi instalada, dúvidas sobre o futuro começaram a brotar. Durante esse período, eu passei algum tempo estudando história, e percebi que nós humanos, não importando quantas lágrimas precisemos derramar para aprender a lição, no momento que elas se secam nós esquecemos. Esse é o tipo de seres que somos.

Claro, ninguém deveria esquecer a promessa de que a indescritível tragédia que ocorreu naquele dia nunca ocorresse de novo. Eu quero acreditar nisso.

Mas será que um dia, em um futuro onde as memórias das pessoas desaparecerem, a nossa tolice cause nossa viagem até aquele mesmo caminho novamente? Não consigo me livrar deste medo.

Por causa disso eu repentinamente decidi escrever tudo isso, mas de vez em quando me encontrei confusa. Como se minhas memórias tivessem sido comidas aqui e ali, fazendo eu não me lembrar da realidade de detalhes importantes.

Apesar de eu checar com pessoas que estiveram lá na época, como tendemos a criar detalhes para as lacunas em nossa memória, eu fiquei surpresa em descobrir que mesmo as memórias que compartilhamos são contraditórias.

Por exemplo, logo antes de encontrar o Falso Minoshiro no Monte Tsukuba, eu coloquei óculos de sol tingidos de vermelho. Eu lembro desse fato claro como o dia, mas por algum motivo, Satoru tem certeza que eu não estava usando nenhum tipo de óculos. E não apenas isso, Satoru também deu a entender que achar o Falso Minoshiro foi um feito que ele fez sozinho. Claro, uma noção ridícula como essa é absolutamente falsa.

Eu engoli meu orgulho, entrevistei o máximo de pessoas em que pude pensar, e me deparei com ainda mais pontos conflitantes. Durante esse processo, uma realidade inegável me ocorreu. Não existia uma única pessoa que a memória não tivesse sido distorcida para ocultar suas próprias falhas.

Enquanto eu estava rindo de pena da tolice humana e escrevendo minha nova descoberta, eu de repente percebi que não havia base alguma para me excluir dessa regra. Da perspectiva de outra pessoa, não haveria dúvida de que as memórias que estou escrevendo foram distorcidas apenas para mostrar meu lado bom.

Portanto, eu gostaria de dizer que já que esta história é da minha própria perspectiva, ela pode sofrer de alguma distorção para me auto justificar. Acima de tudo, o número de mortes que foram consequências das nossas ações pode ser uma motivação para tal auto justificação, mesmo que seja feito inconscientemente.

Tendo dito isso, eu vou tentar desenterrar a verdade de minhas memórias o melhor que eu posso porque quero encarar os fatos e retratar realisticamente os eventos que ocorreram. Além disso, quero imitar o estilo de histórias antigas na esperança de recriar meus pensamentos e sentimentos naquela época.

Este rascunho é escrito com tinta à prova de desbotamento e no que se diz ser papel antioxidante que pode durar um milênio. Quando estiver terminado, não mostrarei para ninguém (exceto Satoru, talvez, e perguntar sua opinião), colocar em uma cápsula do tempo e enterrar fundo embaixo da terra.

Então farei mais duas cópias para um total de três serem deixadas para trás. Se algum dia no futuro a Velha Ordem, ou algo assim, for restaurada e todas as publicações forem censuradas, a existência desse registro deve ser mantida em segredo pelo máximo de tempo possível. Eu acho que três é o suficiente para tal situação.

Em outras palavras, esse registro é uma longa carta deixada para meus conterrâneos daqui a mil anos. (Quando for lido, nossas verdadeiras intenções serão reveladas, e se elas devem ou não começar um novo caminho deve se tornar óbvio.)

Eu ainda não me apresentei.

Meu nome é Saki Watanabe. Eu nasci na cidade de Kamisu 66 em 10 de Dezembro, 210.

Logo antes de eu nascer, floresceram vários simultaneamente de um bambu que só floresce a cada cem anos. Neve caiu no meio do verão, todos pensaram que não veriam uma gota de chuva por três meses. Basicamente todo tipo anormal possível de fenômenos meteorológicos ocorreram. E então na noite de 10 de dezembro, quando todos pensaram que a Terra estava coberta em trevas, um feixe de um relâmpago iluminou o que muitos depois diriam ser um dragão de escamas douradas nadando nas fendas entre as nuvens.

... A realidade é que nada disso ocorreu.

210 foi um ano normal, e como todo infante que nasceu naquele ano na cidade de Kamisu 66, eu era uma criança comum.

Mas para minha mãe, eu não era. Ela estava perto do fim de seus trinta anos e estava convencida de que nunca iria ter filhos. Em nossa época, ter um filho na casa dos trinta é considerado uma gravidez bem tardia.

Além do mais, minha mãe, Mizuho Watanabe, tinha a importante função de bibliotecária. As decisões dela não apenas influenciavam o futuro de nossa cidade, mas em certos casos poderia também resultar na morte de outros. Ter que aguentar tamanha pressão todos os dias, além de ser cuidadosa com sua gravidez, não é o tipo de dificuldade que as pessoas normalmente têm que lidar.

Durante esse período, meu pai, Takashi Sugiura, era o prefeito da cidade. Apenas isso já era um trabalho atarefado. Mas próximo a época do meu nascimento, o trabalho de bibliotecário vinha com uma responsabilidade incomparavelmente maior do que a de prefeito. Claro que ainda é assim agora, mas provavelmente era ainda mais forte antes.

Minha mãe estava no meio de uma reunião sobre a classificação de uma coleção de livros recém-descoberta quando entrou em trabalho de parto. Isso foi uma semana antes da data esperada de nascimento, mas já que sua bolsa quebrou sem aviso prévio, ela imediatamente foi transportada para o hospital de maternidade perto dos arredores da cidade. O som do meu primeiro choro foi ouvido até quase dez minutos depois. Infelizmente, meu cordão umbilical estava enrolado em meu pescoço. Meu rosto estava roxo e eu estava impedida de chorar direito. A assistente de parto, que era nova no trabalho, quase desmaiou de pânico com isso. Por sorte, o cordão foi cortado facilmente e eu finalmente respirei o ar deste mundo e soltei um choro saudável.

Duas semanas depois, na mesma maternidade, Maria Akizuki, que mais tarde se tornaria minha amiga, nasceu. Além de ser um nascimento prematuro, ela estava, assim como eu, com o cordão umbilical enrolado em seu pescoço. Mas a condição dela era bem mais séria que a minha; ela estava quase morta quando nasceu.

A assistente de parto, armada com a experiência de meu nascimento, aparentemente lidou com isso bem calmamente. Se tivesse tido um pequeno deslize e o cordão fosse cortado apenas um pouquinho depois, não há dúvidas de que Maria teria morrido.

Quando eu escutei essa história pela primeira vez, eu estava exaltada de que de alguma forma salvei a vida de minha amiga indiretamente. Mas agora, sempre que lembro disso, sou atingida com uma onda de pensamentos complicados. Porque se ela nunca tivesse nascido, nunca teria tido uma perda tão grande de vidas humanas...

Vamos voltar para a história. Eu passei minha feliz infância rodeada pela natureza exuberante da minha cidade.

Kamisu 66 consiste em sete vilas espalhadas em uma circunferência de cinquenta quilômetros. É separada do resto do mundo pela Barreira Sagrada. Daqui a mil anos, a barreira pode não existir mais, então explicarei rapidamente. É um manto de palha grosso pendurado com serpentinas de papel (Shimenawa e Shide) que age como um escudo, prevenindo de entrar na vila coisas impuras.

Crianças eram avisadas para nunca pisar fora da barreira. Espíritos do mal e monstros rodeavam do lado de fora e toda criança que fosse se aventurar sozinha iria sofrer terrivelmente.

— Mas que tipo de coisas assustadores estão lá, exatamente? — Eu lembro de perguntar para meu pai, embora menos fluentemente, um dia quando eu tinha perto de seis ou sete anos de idade.

— Muitas coisas diferentes. — Ele olhou por cima de seus documentos. Descansando seu queixo em sua mão, ele olhou para mim carinhosamente. Aqueles calorosos olhos castanhos estão queimados em minha memória até este dia. Meu pai nunca me olhou severamente e apenas uma vez ele levantou sua voz. Era porque eu não estava prestando atenção para onde eu estava indo e iria cair em um buraco aberto no chão se ele não tivesse me avisado.

— Saki, você já sabe, não é? Sobre os Ratos Monstros, Gatos Trapaceiros e Cães Balão.[1]

— Mas a mãe disse que esses são inventados.

— Os outros podem ser, mas os Ratos Monstros existem. — Ele disse tão despreocupadamente que fiquei chocada.

— Mentiras.

— Não são mentiras. Ratos Montros foram recrutados para ajudar a construir a vila recentemente também.

— Eu nunca os vi.

— Nós não deixamos as crianças os verem. — Meu pai não disse o porquê, mas imaginei que fosse porque Ratos Monstros são muito horríveis para serem vistos.

— Mas se eles escutam os humanos, então não são tão assustadores, certo?

Meu pai abaixou os documentos que ele estava vendo e levantou sua mão direita. Enquanto ele cantava um feitiço em voz baixa, uma fibra fina de papel se transformou, como tinta invisível sendo revelada, em um complicado padrão tecido no papel. O selo de aprovação do prefeito.

— Saki, você sabe o que “obediência falsa” significa?

Eu balancei minha cabeça silenciosamente.

— Significa aparentar obedecer a alguém, mas na verdade pensar o oposto em segredo.

— O que você quer dizer com “o oposto”?

— Enganar a outra pessoa e secretamente planejar traí-la.

Meu queijo caiu.

— Pessoas assim não existem.

— Você está certa. Pessoas traindo a confiança das outras é impossível. Mas Ratos Monstros não são pessoas.

Pela primeira vez, eu senti as agitações do medo.

— Ratos Monstros nos adoram e nos obedecem porque temos o cantus. Mas nós não sabemos como eles vão se comportar com crianças que ainda não despertaram seu cantus. É por isso que evitamos que os Ratos Monstros e as crianças se encontrem.

— Mas quando você os dá trabalho para fazer, eles não vêm sempre para a cidade?

— Durante esses tempos sempre há um adulto os supervisionando. — Meu pai abaixou os documentos em uma caixa de arquivos e levantou sua mão novamente. A tampa tremeu e derreteu na caixa, formando um bloco oco lacrado. Como ninguém mais sabe o que ele visualizava quando usava seu cantus, é difícil para qualquer outra pessoa além de meu pai reabrir a caixa sem quebrá-la.

— De qualquer forma, nunca vá para o lado de fora da Barreira Sagrada. Dentro, a força da barreira nos deixa seguros, mas se você por um pé para fora, não poderá ser protegida pelo cantus de ninguém.

— Mas os Ratos Monstros...

— Não são apenas os Ratos Monstros. Você aprendeu as histórias sobre os Espíritos Malignos e os Demônios do Carma na escola, certo?

Minha respiração travou em minha garganta.

Histórias sobre os Espíritos Malignos e os Demônios do Carma foram ensinadas repetidamente durante nos primeiros anos de desenvolvimento. Se tornaram marcadas em nosso subconsciente. Mesmo que as versões que aprendemos na escola fossem feitas para crianças, elas ainda nos davam pesadelos.

— Realmente existem Espíritos Malignos, ...Demônios do Karma e coisas assim do lado de fora da Barreira Sagrada?

— Uh huh. — Meu pai sorriu levemente para me confortar.

— Essas são lendas antigas, eles não existem agora...

— É verdade que eles não foram vistos pelos últimos cento e cinquenta anos, mas é melhor estar preparado para o inesperado. Saki, você não iria querer encontrar do nada um Espírito Maligno como o Menino Coletor de Ervas, não é?

Eu concordei silenciosamente.

Aqui, eu vou resumir as histórias dos Espíritos Malignos e dos Demônios do Karma. Entretanto, não é a versão de conto de fadas infantil, mas a versão adulta completa que todos aprendem quando entram na Escola Sábia.

 

Conto do Espírito Maligno

Esta é uma história de cerca de cento e cinquenta anos atrás. Havia um menino coletando ervas na montanha. Focado em sua atividade, ele chegou à Barreira Sagrada. Ele já havia pego quase todas as ervas de dentro da barreira quando aconteceu de ele olhar para cima e ver que ainda havia muitas ervas do lado de fora.

Ele sempre foi avisado para nunca sair da Barreira Sagrada. Se, por algum motivo, ele tivesse que sair, deveria ter um adulto junto.

Mas não havia nenhum adulto por perto. O menino ficou tentado e pensou que se saísse só um pouquinho ficaria tudo bem. Ele colocou a cabeça para fora primeiro. Ele apenas precisava passar por baixo da barreira, pegar algumas ervas e voltar. Estaria tudo bem.

O menino escorregou silenciosamente por baixo da corda. As serpentinas balançaram e farfalharam.

Naquele instante, ele subitamente teve um sentimento desagradável. Além da culpa de desobedecer aos adultos, havia outro sentimento de inquietude que ele nunca havia experenciado antes.

Reafirmando para si que não havia nada de errado, ele se aproximou das ervas.

Então ele viu um Espírito Maligno vindo na direção dele.

Mesmo que fosse da mesma altura que o menino, era de uma aparência assustadora. Sua ira rodava como uma auréola de fogo, queimando tudo ao seu redor. Ao se aproximar, o Espírito Maligno ceifou tudo em seu caminho e fez a folhagem explodir em chamas.

O menino ficou pálido, mas se forçou a não gritar e andou para trás. Se ele pudesse apenas voltar por baixo da corta, o Espírito Maligno iria sumir.

Mas um galho quebrou em seus pés.

O Espírito Maligno virou sua cabeça, com sua face completamente desprovida de emoção. Ele encarou o alvo de sua ira.

O menino se abaixou ao passar pela corda e correu o mais rápido que podia. Tudo ficaria bem contanto que ele entrasse na proteção da barreira.

Mas quando ele olhou para trás, o Espírito Maligno também havia passado pela corda!

Naquele instante, o menino percebeu que havia feito algo irreparável. Ele havia convidado o Espírito Maligno para dentro da barreira.

O menino chorava ao correr pelo caminho da montanha. O Espírito Maligno o perseguiu implacavelmente.

O menino correu pela borda da barreira, para a corrente na direção oposta a da vila.

Quando olhou para trás, o rosto do Espírito Maligno estava escondido pela vegetação rasteira. Apenas seus olhos brilhantes e sua boca maliciosa eram visíveis.

O Espírito Maligno estava seguindo um caminho para a vila.

Ele não podia deixar isso acontecer. Se o Espírito Maligno o seguisse, a vila inteira provavelmente seria destruída.

Ao limpar a última vegetação rasteira, um penhasco puro apareceu para ele. O som do rio no fundo rebatia nas paredes. Através do desfiladeiro estava pendurada uma nova ponte de cordas.

O menino não atravessou a ponte. Ao invés disso, ele foi seguindo a beirada do penhasco.

Quando olhou para trás, o Espírito Maligno havia chego na ponte e estava procurando por ele.

O menino correu determinantemente.

Pouco após isso, uma outra ponte apareceu ao longe.

Ele se aproximou da silhueta da ponte contra o céu nublado. Desgastada por anos de exposição aos elementos, ela balançava assustadoramente como se acenasse para ele.

A ponte poderia cair a qualquer momento. Ninguém a havia usado em mais de dez anos e ele sempre havia sido avisado.

Vagarosamente, o menino começou a atravessar a ponte.

As cordas rangiam. As tábuas eram feitas de carvalho, mas pareciam prontas para quebrar a qualquer instante.

Quando ele estava quase na metade da travessia, a ponte balançou repentinamente. Olhando para trás ele viu que o Espírito Maligno também havia pisado na ponte.

A ponte balançava mais e mais ferozmente cada vez que o Espírito Maligno se aproximava.

O menino olhou para baixo no fim do vale. Era vertiginosamente longe.

Ele olhou para cima. O Espírito Maligno já estava chegando perto dele.

Quando ele pode ver claramente a face desagradável do Espírito Maligno, o menino brandiu a foice que ele estava carregando, e em um movimento, cortou as cordas da ponte.

A ponte balançou para baixo e o menino quase escorregou, mas conseguiu, de alguma forma, pegar na corda.

O Espírito Maligno caiu no fundo? O menino olhou. De algum jeito, o Espírito Maligno também estava escalando pela corda. Ele virou seu olhar assassino para ele devagar.

A foice havia caído no vale. Ele não podia cortar as cordas mais.

O que ele deveria fazer? Ele rezou para os céus. Não importa que eu morra; por favor, não deixe o Espírito Maligno entrar na vila.

O desejo do menino alcançou os céus? Ou foram as cordas que não conseguiam mais aguentar o peso?

A corda rompeu, enviando os dois para o vale. O menino e o Espírito Maligno desapareceram de vista.

Espíritos Malignos nunca apareceram desde então.

 

Há algumas lições nessa história.

Crianças podem facilmente entender que está as ensinando a permanecer dentro da Barreira Sagrada. Para crianças um pouco mais velhas, está provavelmente contando que deveríamos nos preocupar mais com a vila do que conosco, e estarmos preparados para nos sacrificar para isso.

Mas quanto mais inteligente você for, mais difícil é de entender a verdadeira lição.

Quem poderia pensar que o real objetivo dessa história é nos contar que Espíritos Malignos realmente existem?

 

Conto do Demônio do Carma

Esta história é de cerca de oito anos atrás. Havia um garoto que morava em uma vila. Ele era uma criança incrivelmente brilhante, mas tinha um defeito. Conforme crescia, esse defeito se tornou mais e mais óbvio.

Ele era extremamente orgulhoso de sua inteligência e olhava para todo o resto com desdém.

Ele pretendia aceitar os ensinamentos da escola e dos outros adultos, mas as lições importantes nunca alcançaram seu coração.

Ele começou a zombar da tolice dos adultos e ria das leis do mundo.

Arrogância planta as sementes do carma.

O menino gradualmente se afastou de seu círculo de amigos. Solidão se tornou sua única companheira e confidente.

Solidão é o canteiro do carma.

Em seu isolamento, o menino passou muito tempo pensando. Ele pensou sobre coisas proibidas e questionou coisas que deveriam ter sido deixadas quietas.

Pensamentos impuros deixavam o carma crescer sem ser verificado.

O menino sem saber deixou mais e mais carma crescer, e se transformou em algo inumano — um Demônio do Carma.

Antes de qualquer um saber, a vila estava vazia; todo mundo havia fugido com medo do Demônio do Carma. Ele foi viver na floresta, mas todos os animais de lá desapareceram também.

Conforme o Demônio do Carma andava, as plantas ao seu redor se contorciam de todas as formas imagináveis e apodreciam.

Toda a comida que tocava instantaneamente se transformava em veneno letal.

O Demônio do Carma vagou sem rumo pelos mortos, deformando a floresta.

Eventualmente, ele percebeu que não deveria viver neste mundo.

O Demônio do Carma deixou a escuridão da floresta. Na frente de seus olhos, ele viu, enrolado em um esplendor brilhante. Havia chego em um profundo lago aninhado nas montanhas.

Ele andou para o lago, pensando que uma água pura como aquela certamente iria limpar seu carma.

Mas a água o envolvendo instantaneamente se tornou negra e turva, e começou a se tornar veneno.

Demônios do Carma não deveriam existir nesse mundo.

Ele entendeu isso, e silenciosamente desapareceu no fundo do lago.

 

A lição aqui é provavelmente mais direta que a da história do Espírito Maligno.

Mas é claro, isso não significa que entendemos o real significado por trás dela. No mínimo, não até aquele dia, onde em nosso incessante desespero e tristeza, vimos um verdadeiro Demônio do Carma com nossos próprios olhos...

Desculpe, às vezes quando estou escrevendo sou inundada por memórias que ameaçam me sufocar, e não posso controlá-las. Vamos voltar para a minha infância.

Como escrevi antes, Kamisu 66 é feita de sete vilas. No centro é onde está reunida a administração da cidade. Na margem oriental do Rio Tone está a vila de Kayawa. Para o norte, no meio de uma floresta lotada de grandes casas, está Matsukaze. No leste, a floresta se abre para o litoral, onde Shirasu está. Adjacente à Kayawa, na vila do sul está Suisha. Na outra margem do rio, frente ao noroeste, está a vila Miharashi, o qual o nome vem de sua localização. Alinhada com os arrozais no sul está Kogane, e Kunugibayashi no oeste.[2]

Meu lar é em Suisha. O nome provavelmente precisa de uma explicação. Dezenas de canais saindo do Rio Tone voam sobre Kamisu 66 e as pessoas vem e vão com barcos. Apesar disso, o constante movimento da água significava que era limpa o suficiente para se banhar, apesar de você ter de pensar duas vezes para beber. Em frente a minha casa, em adição a muitos Koi[3] de branco e vermelho vivo nadando por aí, havia também muitos moinhos de água, que é de onde o nome veio. Toda vila possui moinhos de água, nossa vila tem um número grande deles, e formam uma vista incrível. Em cima, atrás, embaixo, no centro... Esses são os que consigo lembrar. Talvez houvesse mais. Muitos eram usados para nos aliviar de tarefas mundanas como descascar arroz e moer trigo.

Entre eles há um tipo de moinho de água que só algumas vilas tinham, com lâminas de metal usadas para gerar eletricidade. A energia valiosa é usada para se utilizar os autofalantes no teto da câmara municipal. Uso de eletricidade fora isso era estritamente proibido pelo Código de Ética.

Todo dia antes do pôr do sol, os autofalantes iriam tocar a mesma melodia. É chamada “Going Home” e veio de uma parte de uma sinfonia escrita há muito, muito tempo por um compositor com o estranho nome de Dvorak. A letra que aprendemos na escola é algo assim.

 

O sol se põe sobre as montanhas distantes

Estrelas cravejam o céu

O trabalho de hoje acabou

Meu coração se sente leve

Na brisa fresca da noite

Venham, juntem-se

Juntem-se

 

A fogueira queimando brilhantemente na escuridão

Agora morre

Dormir vem fácil

Me convidando a desaparecer

Gentilmente cuidando de nós

Venha, nos deixe sonhar

Nos deixe sonhar

 

Quando a música toca, todas as crianças brincando nos campos deviam voltar para casa. É por isso que sempre que penso na música, cenários do pôr do sol aparecem em minha mente reflexivamente. A cidade durante o crepúsculo. Longas sombras no solo arenoso da floresta de pinheiros. Dezenas de céus cinzentos refletidos na superfície espelhada dos arrozais. Grupos de libélulas vermelhas. Mas as memórias mais vívidas são de assistir o pôr do sol do topo da colina.

Quando fecho meus olhos, uma cena vem à mente. Era algum momento entre o fim do verão e o começo do outono, quando o tempo estava começando a esfriar.

— Temos que ir agora. — Alguém disse.

Quando ouvi cuidadosamente, pude ouvir a fraca melodia sendo carregada pelo vento.

— Então vamos dizer que foi empate. — Satoru disse, e as crianças saíram dos esconderijos em grupos de dois e três.

Todo mundo, com idades entre oito e onze, haviam passado o dia inteiro comprometidas com um jogo em larga escala de Captura á Bandeira. É um jogo como uma prolongada guerra de bolas de neve no meio do inverno, onde você tem dois times que devem invadir o território uns dos outros e no fim quem conseguir roubar a bandeira do outro time vence. Naquele dia, nosso time havia cometido um grave erro no nosso movimento de abertura e parecia que iríamos perder.

— Isso não é justo. Estávamos prestes a ganhar também. — Maria pontuou. Ela tinha a pele mais clara dentre todos, e olhos grandes e claros. Além de tudo, seu cabelo vermelho flamejante a deixava bem notável.

— Se rendam logo.

— Sim, porque somos muito melhores. — Ryou concordou depois de Maria. Mesmo nesta idade, Maria tinha os trejeitos de uma rainha.

— Por que deveríamos nos render? — Eu perguntei indignada.

— Porque somos melhores. — Ryou repetiu o mesmo argumento velho.

— Mas vocês ainda não pegaram nossa bandeira. — Olhei para Satoru.

— É um empate. — Ele declarou.

— Satoru, você está nesse time, não está? Por que está do lado deles? — Maria vociferou.

— Não posso evitar, as regras dizem que o toque de recolher é ao pôr do sol.

— Mas o sol ainda não se pôs.

— Não se preocupe com esses detalhes, isso é só porque estamos no topo da colina, certo? — Eu disse, contendo minha irritação. Mesmo que normalmente fôssemos bons amigos, em horas como essa, Maria me irritava.

— Ei, nós realmente temos que ir. — Reiko disse preocupada.

— Quando ouvimos “Going Home” devemos retornar de imediato.

— Se eles se renderem, então podemos ir para casa. — Ryou imitou Maria.

— Parem com isso. Ei, juiz! — Satoru gritou exasperadamente a Shun. Shun se destacava de nós do topo da colina, observando a cena. Seu buldogue sentava quietamente a seu lado.

— O quê? — Ele respondeu logo após.

— Não diga “O quê?” para mim. Diga que é um empate.

— Vamos para casa, então. — Reiko disse e um grupo deles desceram a colina juntos, porque dividiam barcos para chegar em suas respectivas vilas.

— Esperem, ainda não terminamos.

— Estou indo, ou os Gatos Trapaceiros vão nos pegar.

Eles e Maria pareciam insatisfeitos, mas o jogo gradualmente acabou.

— Saki, nós deveríamos voltar também. — Satoru disse enquanto eu andava até Shun.

— Não vai embora?

— Sim. — Shun não tirou os olhos do cenário hipnotizante.

— Ei, vamos logo. — Satoru disse impaciente.

Shun pontuou silenciosamente.

— Lá, consegue ver?

— O quê?

Ele estava apontando na direção de Kogane, perto da borda entre os arrozais e a floresta.

— Lá, um Minoshiro.

Desde que éramos jovens, fomos ensinados que nossos olhos eram mais importantes do que qualquer outra coisa, então todos fomos abençoados com uma boa visão. Desta vez também, de centenas de metros de distância, eu pude discernir o formato branco de algo se movendo lentamente.

— É verdade.

— O quê tem? Não é como se fossem raros ou algo assim. — A voz normalmente calma de Satoru estava tingida com desgosto por algum motivo.

Mas eu não me movi. Eu não queria me mover.

O Minoshiro se movia em um ritmo de caracol pela trilha, pelo prado e desaparecendo na floresta. Enquanto eu rastreava seu caminho, minha atenção voltou para o Shun.

Eu não sabia ainda o nome da emoção que eu sentia. Enquanto eu estava ao lado dele olhando para a vila pintada pela luz do sol poente, meu peito se encheu com um doce, mas doloroso, sentimento.

Talvez esta também seja uma cena fabricada. Uma dramatização feita por uma mistura de episódios similares, salpicado com um pequeno tempero que chamamos de sentimento...

Seja como for, estas cenas ainda possuem um significado especial para mim até hoje. A memória final de uma vida em um mundo sem falhas. Um tempo onde tudo estava em seu lugar e não havia dúvidas sobre o futuro.

Mesmo agora, quando eu penso em meu primeiro amor, ainda sinto um brilho quente, como o sol poente. Mesmo assim, todo o resto logo seria engolido por um vácuo sem fim vazio de tristeza.



[1] Foi optado por realizar as traduções dos nomes das criaturas em japonês, ao invés de deixar os originais (Bakenezumi, Fujou Neko e Fuusen Inu), para uma compreensão mais adequada. O mesmo ocorreu para o Espírito Maligno e o Demônio do Carma (Akki e Gouma, respectivamente), citados a seguir.

[2] Os nomes das vilas foram diretamente pegos do original japonês, sem tradução, pois acredito que sirva para uma maior imersão na história. Entretanto, algumas traduções devem ser feitas aqui para melhor compreensão do texto. Miharashi (見晴) significa Visão, Suisha (水車) significa Moinho de Água e Kogane (黄金) significa Dourado.

[3] Uma raça do peixe carpa.